21.8.04

Era uma vez um edifício misto de serviços e lojas caríssimas.
No começo, éramos só eu e o ascensorista. Na descida, uma horda de gente artificialmente loira e lisa com sacolas pink-berrantes entope o elevador.
Nas sacolas pink está escrito "espaço fashion". São duas mulheres de uns quarenta, vestidas e maquiadas como a Britney Spears, carregando a maior parte das sacolas; a avó, que sorri perante e durante toda a cena; a menina de uns 14 anos, também carregando uma sacolinha; a única sem a sacola é a mais nova, curvada e de cara fechada ("Sullen Girl"). Talvez uma nova-família, núcleo feminino do Manoel Carlos: vó loira, mãe loira, duas filhas morenas, melhor-amiga-loira-da-mãe-loira (homens canalhas!). Todas, menos a Sullen Girl, sorriem. Não um sorriso smirk (o dos olhos apertados e leve contração satisfeita dos lábios, de quem assiste um Monty Python), sabe, mas um sorriso grin (o das recepcionistas falsas e dos anúncios odiosos).
Pois Sullen Girl é intimada a sorrir. Não só convidada, mas também intimada, pressionada, convocada, obrigada a sorrir. Para tal, a horda loira esbofeteia sua auto-estima.
- Que cara zangada.
- Que cara zangada, hein!!!
- Ninguém gosta de gente mal-humorada.
- Gente mal-humorada não tem amigos.
- Ri! Ri! Que que cê tem?
- Que cara feia, hein!
Cócegas e abraços forçados. Sullen Girl, constrangida, ri. Ri para elas pararem com isso, e em parte porque quando em criança (tipo, ontem) ela estava satisfeita com a vida.
Sullen Girl as ameaça. Não só no sentido de não perceberem, por contraste, dentro do elevador (eu e o ascensorista) que elas estão fingindo que estão, ou são, felizes. Mas no sentido de elas mesmas também perceberem, e pararem de conseguir fingir, e terem que trocar todo o guarda-roupa para combinar, e pararem de assistir novelas-das-oito, e deixarem de tingir o cabelo, e de desejarem homens bonitos porque é isso o que gente normal faz, e de viverem a vida toda pagando um mês à frente no cartão de crédito, e o trabalho, e o chopinho depois do trabalho, e os remedinhos pra dormir, já pensou a canseira? Coitadas. Ficariam sem eira nem beira, àquela altura da vida mudar dá uma trabalheira. É melhor mudar a pequena anomalia. É de pequeno que se torce o pepino, elas sabem.
E eu, nó na garganta, sinto-me compelida a quebrar a cara delas ("to crack their grin"). Não com um soco, mas com a seguinte afirmação, numa voz monótona e clara, feita estrategicamente entre o terceiro andar de garagem e a sobreloja, para que não houvesse tempo para a resposta:
- Vocês estão enganadas. Mantive esta cara (*gesto suave da mão sobre o rosto*) toda a minha vida, e não só consegui passar relativamente bem pela adolescência como estou fazendo uma bela entrada na vida adulta. Tenho poucos e bons amigos e um relacionamento amoroso feliz, mas quero distância da minha família por ter insistido exatamente nesta mentira deslavada que vocês estão tentando pregar.
E para a menina:
- Você vai ser feliz de verdade e não como elas.
E se estivesse a fim de ser dramática:
- Eu sou você... amanhã (*brandindo um uísque*).
E deixar aquelas caras que ficam num vaso perto da porta das casas delas pelo menos um pouco estragadas.
Mas Sullen Girls são umas inertes, além de subversivas. Não adianta ninguém falar nada para elas, e como seria in her behalf que eu estaria falando, não falei nada. Conhecer o caminho não é igual (e não é nada parecido) com trilhar o caminho.