16.12.05

enjoy the silence



(O Globo, 12 de dezembro de 2005.)
Ladrões ferem jovem a faca em Botafogo

Simone Silva Campos, de 22 anos, foi esfaqueada ontem à noite durante uma tentativa de assalto em Botafogo. Ela caminhava na Rua Dona Mariana quando foi abordada por dois homens armados de faca e estilete, que queriam levar seu Ipod. Depois de reagir, ela foi golpeada com um estilete na barriga e nas costas. A dupla fugiu sem levar nada e a vítima, que está fora de perigo, foi levada para o Hospital Miguel Couto, na Gávea. O caso foi registrado na 10ª DP (Botafogo).


Eles quiseram me entrevistar, mas eu não deixei. Resolvi dar uma exclusiva para o meu próprio blog.
Eu não reagi coisíssima nenhuma. Se reagi, não foi a um assalto. Eu estava voltando do supermercado com uma Ruffles Churrasco de 200g e um iogurte de morango. Bermuda e camiseta. O ipod no bolso, a carteira no outro, a chave no terceiro. E um guarda-chuva, que chovia. Plena luz do dia, pouco depois das 5 e meia da tarde.
Ando rápido, nenhum pivete consegue me pegar. Então tem dois caras andando na minha frente, uns 30 anos, calça comprida, casacos, sapato social. Quando me aproximo deles, o mais baixinho olha pra trás, acho compreensível - medo de assalto - e cochicha algo com o outro. O baixinho anda até mim, que paro, sem mostrar nenhuma arma, sem dizer nenhuma palavra, e olhando pro meu corpo. Pensei: tarado, e tentei impedir o seu avanço com o guarda-chuva. Ele empurrou o guarda-chuva pro lado e me deu duas estocadas com a faca-olfa que agora eu estava vendo, toda enferrujada e de lâmina completamente pra fora; não sinto nada parecido com dor. Não acredito que acabei de levar duas estocadas. Protejo a barriga com a mão. O homem agora repete dá o aipódi, dá o aipódi que eu estou protegendo com as mãos, junto com a barriga ferida, enquanto grito, tendo entendido agora que é um assalto; ele arranca o fone dos ouvidos enquanto repete mais dá o aipódi. O fone fica metade na mão dele, que corre dos meus gritos junto com o outro. Grito muito mais, conscienciosa, para que corram; e pega ladrão e fui assaltada e tudo isso. Estando eles longe, pisco os dois olhos e decido continuar a andar até em casa; a mão ainda protege o ferimento. Dou um primeiro passo e resolvo levantar a blusa e dar uma olhada. É uma mistura de sangue abundante com água de chuva e uma bola amarela - pus? (O cirurgião me explicou que era gordura. Ganhei uma lipo de brinde.) Suspirando, deito no chão molhado decidindo que é melhor não arriscar um desmaio; chove em mim; grito mais para atrair Curiosos, fui esfaqueada e me assaltaram. Eles vêm. Espero a pergunta (o que aconteceu???) repito que fui assaltada e me esfaquearam; o que os Curiosos repetem entre si como um viveiro de pássaros. Vendo que estão satisfeitos, aproveito para pedir que liguem para a emergência, 190, e que meu nome é tal e o da minha mãe é tal, aliás seria aconselhável também ligar para ela, cujo telefone também era tal, coisa que eles fizeram. Disseram pra pressionar, pressionei; pedi para o senhor fumante fumar um pouco mais para lá, por favor, e tentei alcançar (e me passaram) meu guarda-chuva, ainda aberto no chão, para cobrir a cara, não as feridas. Chegaram os bombeiros e me atenderam; pouco depois chegou a minha mãe. Fui pro Miguel Couto e depois para o Quinta D'Or.

Primeiro dia, CTI. Dormi 3 horas, tinham me posto na frente de uma senhora que exigiu seus analgésicos a madrugada inteira, batendo com o troço plástico que fica preso no dedo na beira da cama (ainda não está na hora, dona Isabel...). As outras horas passei sacaneando a linha branca do eletrocardiograma, que descobri que era a respiração. Consegui controlar as batidas do coração também (Scanners), mas achei melhor não bulir muito com isso.
Depois fiquei num quarto lendo Morvern Callar (moça cujo nome significa a mudez mais quieta) cheia de visitas em volta. As visitas se dividiam em desejáveis e indesejáveis. E o pior é que não dava pra fugir.
TV aberta e ninguém achava meus outros livros pra me dar. Vi A Identidade Bourne, Billy Elliot que me fez dançar escondida no banheiro com o ipod, até por causa do cenário raver de Morvern, um filme de Kung Fu com bastante porrada. Cancelaram o Chaves, agora tem Family Feud. Adivinhei algumas coisas.
Vi outras coisas bizarras, como uma espécie de Rei Leão live-action que passou na Sessão da Tarde e o Cristóvam Buarque dando entrevista no Ratinho.
Fiquei com soro três dias e quando foram tirar, desmaiei. Por causa disso fiquei mais um dia (com a condição de que não encostassem em mim mais nenhuma agulha).
Então agora estou ótima, não foi atingido nenhum órgão interno e não estou com medo de andar na rua.
O problema é que vão continuar estimulando loucamente o consumo e falando de décimos-terceiros e enchendo a cabeça das pessoas de fantasias de fartura natalina e tanto dinheiro correndo por aí, basta pegar. As enfermeiras do Quinta vieram compartilhar suas histórias de assalto comigo; é o Natal, é o Natal.