16.1.06

O silêncio da inocente

Prometi explicar um dia o significado desta beleza de apelido. E ainda tem outro no fim, de bônus.

Canibal - Não, não "canibal". Eu tinha 12 anos, era época de "O silêncio dos inocentes". Era "kênibal". "Rênibal dê Kênibal".
Começou quando uma menina me xingou, eu comecei a correr atrás dela e, quando a encurralei, tropecei e caí por cima dela. Meus dentes abriram o supercílio dela e ela teve que levar três pontos.
Foi um acidente.
Antes do evento supercilial: o nome dela era Renata e morava praticamente em frente ao meu prédio. Quando ela descobriu isso, desenvolveu uma rotina de me chamar para brincar no playground dela.
Eu odiava. Minha mãe me pegava dizendo que não ia porque tinha dever de casa, ou simplesmente que não estava a fim, e me corrigia no interfone: ela vai, sim.
Ela dizia que eu tinha que me socializar.
O que pouca gente sabe é que, na mesma época 9-14 anos que os meninos se porram na saída, no recreio e até na sala de aula para provar que são machos, as meninas têm a mesma coisa. Só que a porrada é no moral. Parece que você não é uma fêmea se não participar de alguma fofoca/boato venenoso, apelido, traminha ou exclusão do grupo. E assim como o fisicamente franzino é o que mais apanha, as meninas preferem a de psiquê mais frágil na hora de bater. Ou seja, eu.
A hora de brincar com Renata era isso: tortura. Ela e uma vizinha pareciam não se divertir o suficiente com as brincadeiras e sempre inventavam alguma forma de me sacanear. As brincadeiras com "painel de juízes" (como de modelo) eram sempre viciadas; nas com bola, a bola sempre me acertava forte; a minha vez de brincar era sempre a última e assim por diante.
Só sei que eu saía de lá me sentindo péssima. Eu, coitada, achava que se conseguisse fazê-las se divertirem o suficiente, esqueceriam de me zoar. Mas imagine se elas desistiriam justo do ponto principal da diversão.
Quanto ao apelido, não adiantava explicar que foi acidente. Pegou mesmo. Pique-pega comigo era "Hora da Morte", no recreio os meninos paravam o futebol para dizer sorrindo "Kêêê-nibal!!". E quem sabe? Talvez meu subconsciente tivesse mesmo programado uma boa mordida na sobrancelha para acabar com aquela palhaçada toda. Bem ou mal, ganhei algum respeito. E Renata nunca mais me chamou para brincar.

Autista - Este foi no segundo grau, por incrível que pareça. Eu mudei para um colégio mais forte, de criaturas esnobes e ricas (o futuro de nosso país!) e fui colocada rigorosamente na pior turma. Meu desprezo era tão patente que eles começaram a ficar incomodados e finalmente vieram falar comigo. Para me enquadrar.
Cansada de ouvir asneiras, comecei a fingir que não as ouvia. Eles vinham e apoiavam uma mão na minha carteira para me provocar, e eu impávido colosso olhando pra frente.
A frase que começou tudo foi "Parece uma autista". Pela primeira vez, senti um instantâneo orgulho do meu apelido. Nada de atirar pérolas aos porcos.