31.8.06

Hunter

Agora é Kipling quem escreve meus sonhos. Sonhei que uma cobra, um leão branco e um elefante resolvem "não" se comer e viverem em sociedade. Eu sou os três em algum momento. De repente, chega outro leão - mais jovem que o branco - e começa a morder o elefante. Infelizmente nessa hora sou o elefante. Meio mastigado, peço a ajuda do outro leão, que está fora - hoje é a vez dele de sair para caçar. Eu, o elefante, acabo enxotando o leão jovem com ajuda da cobra; olho pras próprias partes mastigadas e penso: "que desagradável".
Gosto da Wikipedia porque não é uma Britannica. Até a sabedoria comum está catalogada lá, just in case (ou porque há espaço). O artigo sobre cabelos, por exemplo.
"Human beings have many variations in hair color and hair texture."
"People also change their hair color to colors that do not occur naturally."
"Many people use hair dye to disguise the amount of gray in their hair."
"...most people of Asian descent have very straight black hair, while Africans tend to have very curly hair."
É bom para quando você está escrevendo e quer enxergar de novo o óbvio. É como uma enciclopédia para etês.

30.8.06

No momento estamos sem palavras com K...

Tenho dado explicações díspares quando me perguntam a história do livro... todas estão certas. Abaixo, vão algumas.

Kafkiana: A mulher dele abandona ele. Ele acorda com uma menina em casa sem saber de onde ela veio.

Kawaii: É uma menina que resolve trocar o Brasil pelo Japão sem sair do Brasil.

Kantiana: É contra uma cidade excessivamente voltada para o belo.

Konquistador (saiu um padrão, agora devo mantê-lo): É sobre as dores do crescimento. Sem querer acabou sendo sobre política também.
Primos Pop

Meu priminho 1: Gabriel, vulgo "Seu Flor", fazendo música melhor do que a que toca nas MPB-FMs da vida.
Meu priminho 2: César Cardadeiro, Ferris Bueller da vida real e trabalhador da Malhação.

28.8.06

Final de agosto é uma mistura intricada de preto e branco... áreas de cinza, mas aproximando (flying forth) com o Google Earth, vemos minipretos e minibrancos que não se homogeneízam, como um microcalçadão. Eu realmente gosto-e-desgosto.

27.8.06

Eu também escutava Outhouse (do mesmo Nathan Fake). Outhouse me transportava (mentalmente) para uma rua tijucana interna, esquecida, ainda com casas antigas e um tanto sombrias, no final de uma tarde nublada (dull) de julho, adivinhando assombrações por trás daquelas trepadeiras folhosas. A mesma sensação que tenho ao me embrenhar pela General Glicério, nas Laranjeiras, mas ainda mais remota. A rua por que ninguém passa. É uma sensação de passado, mas não de passado nostálgico. Uma sensação de passado presente. O avanço no espaço que fosse um recuo no tempo. Como se eu estivesse entrando num local onde a divisória entre sonho e realidade não é tão clara. E eu estivesse prestes a, prestes a... descobrir... algo. É uma espécie de paranóia clariceana e estou certa de que deve haver um nome de catálogo para esta doença. De qualquer modo é incrível como músicas e lugares podem ser tão evocativos.
Era um dia tenebroso que nascia - naquela época em que eu não trabalhava e mal estudava, e dormia às quatro da tarde, não tinha problema. Era um dia tenebroso porque eu não conseguia mais me lembrar - eu não conseguia mais precisar se era um dia em que as pessoas trabalhavam ou se era um feriado no meio da semana ou um sábado ou domingo. Ou se eu estava de férias ou se alguns dias no meio da semana não tinham aula, então eram extras domingos. Eu podia ser a garota na bicicleta. Havia dia e noite, e eu gostava da noite. Ficava no computador de noite. Então me arrumava para me sentir um pouco gelada e colocava o ipod no bolso e a bolsa na cestinha, porque esquecera que havia assaltos. Não tinha ninguém na rua. Carros ou pessoas. Eu fazia meu cérebro crescer: pedalava pela cidade antes do sol nascer, ouvindo The sky was pink remixada. Vê, estou te alimentando, dizia-me. Alimentando a sua loucura mansamente. Conferia o relógio de relance, ainda não era hora. Queria que o céu ficasse rosa. E queria rilhar os dentes com a adrenalina. Passeava sem rumo, ladeiras abaixo, ladeiras acima, mão e contramão, transversais e paralelas. Eu entoava: eu sou assim mesmo, eu sou assim mesmo. Por isso digo que techno music fried my little brains. Se ela (e ipods) não existissem, eu ouviria sinfonias e desmaiaria na Sala Cecília Meireles. Eu sou muito musical. E também muito cromática. Estranhamente, isso serve para escrever livros. Quando tento fazer música ou fazer imagens, falta pelo menos habilidade, porque sai sempre medíocre.

22.8.06

Auto-suficientes em falta de noção

Outro dia o JP me contou que viu uma dona dirigindo, sozinha, um utilitário com um adesivo de Che Guevara no pára-choque.
Expliquei para ele que a dona do "utilitário revolucionário" deve achar que o justo é todo mundo ter tanto quanto ela. Portanto, ela advoga pela "justiça social". Acontece que, se tivesse uma revolución aqui hoje e distribuíssem o PIB em partes equânimes, e se desse para todo mundo ter um carro (acho difícil), ele não seria melhor que um Fusca 82.
Tenho a teoria que o classe-média-alta é tão obcecado por pobre porque não o suporta. Então separa o pobre de si com esse rótulo ("pobres", ou "excluídos", ou "socialmente desfavorecidos") e fica vendo como a vida dele é diferente da sua, quando seria melhor que fosse igual. Quer dizer: "eu sou foda porque tenho; se você não tem, (é um merda e) deve ser ajudado".
Pra mim é tudo gente, com todas as boas e más características que isso implica.
Sei que as empregadas domésticas acham a classe média um bando de mimados. Quer dizer: três refeições por dia? piso reluzente? polimento de pratarias? Quando se trata de algo que a empregada doméstica também poderia fazer na casa dela, como engomar as camisas ou levar as crianças na escola, ela está fazendo e pensando: "Não faço isso nem pra mim". Quando é algo que de jeito nenhum a empregada faria na casa dela, do tipo "polir as pratarias", ela pensa: "Se eu tivesse isso aqui já estava feliz".
A empregada não consegue ver que saneamento básico é bom, que fazer uma refeição balanceada em vez de biscoito (Plano Real) é bom; a patroa não consegue ver que não poder bancar um Omo Multi-Ação não é a maior tragédia da humanidade, que não poder torrar 170 reais numa blusinha perfeita quando se está tristinha não é uma tragédia.
É isso que me irrita: o fato de todo mundo colocar paredes no seu quintal e denominar aquilo de "o seu mundinho", e o de cada um achar que o que não pertence ao seu mundinho é nojento.

19.8.06

Ainda sob o choque do Horário Eleitoral Gratuito de ontem, escrevo algumas dicas para votar bem.

Ele tem proposta, mas é boa?
Pois é, agora descobriram que "candidato tem que ter proposta". Então eles fazem "propostas". Só que todas populistas e assistencialistas: "diminuir a carga tributária", "aumentar os benefícios Bolsa-Escola e Bolsa-Família". Coisas que te beneficiam diretamente e momentaneamente, mas dificultam que o país ande para a frente. Enfim, pense bem sobre o que dizem as propostas.

Método de propaganda
1. Outdoors e galhardetes foram proibidos. Se chover agora inunda todas as ruas, pois os bueiros estão todos entupidos de folhetos jogados no chão "discretamente".
O que pode é propaganda espontânea, aquela que o eleitor faz pelo seu candidato. Você pode ficar em um cruzamento e levantar uma bandeira com o nome dele. Então alguns candidatos contratam pessoas pobres para ficar segurando a bandeira deles em cruzamentos movimentados. Disso se deduz que estes candidatos têm muito dinheiro e escassos partidários "reais", que segurariam a sua bandeira de bom grado. Ou seja, roubou e não fez.
2. Se o candidato em campanha dá festas, feijoadas, bailes funk, ou tem uma música de campanha muito chamativa e dançante, ele está tentando te ganhar do jeito errado. O que impede que ele tente ganhar dinheiro de um jeito errado? Seja brasileiro: vá à festa e não vote nele.

Horário eleitoral gratuito
Por causa dos mensalões, sanguessugas e saúvas, tem candidato usando ética como plataforma de campanha. Ética é nada mais que o básico, e não deveria ser prometida! O cara tem que prometer "atos", não "comportamentos"!

Recomendo também esse texto sobre propaganda eleitoral, no Duvido.
Os dois posts abaixo foram escritos há um tempo atrás. Agora é que senti do que falam: da possibilidade de não ter que se fazer análises e previsões, se elas mais atrapalharem que ajudarem. Da possibilidade de não ser mecanicista e ainda assim científico. Das "razões que a razão desconhece".
Chatice

Hoje ser chato é algo intangível. Milhares de tribos se formaram com definições díspares e antagônicas de chatice, inclusive dizendo que a chatice não é chata e deve ser deliberadamente exercida. A chatice pode ser redefinida hoje, portanto, como aquilo que você e as pessoas parecidas com você não suportam por motivos inconscientes ou arracionais, mas procuram portar como um conceito. Este conceito é carregado como uma etiquetadora de preços, rotulando as testas de gente recém-apresentada; mas esta etiquetadora também é modificável por esta gente recém-apresentada, especialmente se esta gente se configura como ameaça, e geralmente por um motivo diferente de chatice.
Coherence is overrated

Por mostrar coerência em suas idéias, um pensador não estaria errado. Então todos que tentam defender suas idéias se esforçam em demonstrar a famosa coerência: primeiro constroem um sistema filosófico/idiossincrático inteiro e depois espadanam dentro dele, pimpões. Pouco a pouco, outras pessoas podem vir partilhar de sua piscininha, enquanto outros dirão: mas é uma piscina! Você nunca nada fora dela! E o mar, os rios, etc. E receberão a resposta de que a minha piscininha é só mais uma opção para se nadar, não impede as outras de freqüentarem mares, rios etc. E os outros dirão que a questão não é essa, a questão é que a água deveria ser livre, e ouviriam: porque deveria e assim por diante. A pós-modernidade é assim, chata.
Coisas que um intelectual deveria ser:

Um prestidigitador
Um alvo móvel
Um agente duplo

Coisas que ele não deveria ser:

Um astrólogo
Um coerente
Um escritor de ficção de antecipação

"Olha, é assim que vai ser, como eu estou dizendo. -- Viva, acertei, fui parar no Fantástico! (ou na Sorbonne)."

16.8.06

"Meu ponto de vista é um só: a sinceridade. Eu quero saber o que acontece realmente." Cético? Ele concorda.
- O ceticismo é altamente criativo. Na medida em que você não acredita fundamentalmente nas coisas, você é levado a lutar mais, ao passo que se você tem o seu partidozinho e acha que ele vai resolver tudo, então não tem mais porque lutar. A proposta de esquerda, teoricamente, é sempre melhor. Só que não é realizada na prática. E isso porque os homens, no fundo, são de direita.

Millôr - Revista Leia, março de 1986

15.8.06

Eu tenho um amigo que leu muito Deleuze. Primeiro, ele deu todas as suas roupas fluorescentes-clubber carinhosamente angariadas para os mendigos de sua esquina. Segundo ele, os mendigos ficaram com um visual ótimo. A seguir, foi sua câmera mini-dv (ele cursava Cinema), depois o celular, depois a cama, depois o computador e por fim o telefone fixo. No ponto em que eu o deixei, ele tinha uma máquina de escrever, uma rede e um apartamento, do qual esqueci o número. Acho que só me resta esperar ele passar aqui.

14.8.06

Distopia

O crime perfeito não precisa ser aquele que não é descoberto; basta ser aquele que não pode ser previsto. Seu perpetrante tem um histórico impecável e nenhum motivo para cometê-lo, nem mesmo a própria comichão de "cometer o.crime perfeito".
Vou descartar aqui termos como história, evolução, progresso, que não são do que estou precisando. Mas a "caminhada do homem pelo tempo" tem sido feita sempre na oscilação entre auto-conservação e auto-destruição.
Tem essa concepção agora de biopoder, que é o poder "movido a nós" (lembre-se dos agentes da Matrix, que incorporam em pessoas muito imersas no sistema.)
Levar uma vida, digamos, comodista, sem acreditar em causas, e virar as costas ao sistema quando ele mais precisasse de nós seria um crime perfeito. Porque seria suicídio. Ilógico. Caótico. Afinal, ao cometer esse crime perfeito nós perderíamos toda a nossa comodidade arduamente amealhada. E seríamos infelizes e mortos.
Se conseguirmos nos adestrar a sermos omissos o suficiente, isso deve acontecer.

(Comendo Debord e arrotando Deleuze. Eu não tive um panorama claro de Deleuze até ler o parágrafo 78 de "A sociedade do espetáculo", o qual estou lendo obrigada e achando um tanto preso a conceitos ultrapassados e inúteis. Da contestação de lê-lo saem palavras-chaves de tese como "caos", "não-lógica" e "ação-e-reação". Sabendo eu que isso tinha a ver com o Deleuze, googlei e topei com esse texto aqui que me fez sentir atrasada trinta anos, mas tudo bem. Ah, e ilogicamente, também pensei muito em Bertrand Russell.)

13.8.06

Gahk. Gahk!
Estou fazendo uma série de ruídos aqui, e dançando em volta do meu totem.

9.8.06

Ah, sim: hoje eu li uma manchete velha sobre a estréia do He-man. Título: herói educativo. Sim, He-man, herói educativo. Só podem estar se referindo àquela mensagenzinha do final, porque os vinte minutos que vieram antes eram bem deseducativos.
Ah, o coveiro que enterrou o Tancredo tentou leiloar a pá, e morreu um bebê Tancredo batizado em homenagem ao ex-quase-futuro presidente.
Não sei porque a África entrou na moda assim de repente. Aliás, não só a África, mas o Oriente e o Oriente Médio. Será que é porque os migrantes das ex-colônias imperialistas, agora já estabelecidos em países desenvolvidos, querem consumir literatura "nativa"? Não seeei. Sei que coisas como O outro pé da sereia (Mia Couto) e Feras de lugar nenhum (Uzodinma Iweala, sim, o nome é esse mesmo) têm merecido espaço em todos os espaços e, creio eu mesmo sem lê-los, não desmerecidamente. Esse último (leiam só a sinopse) é de uma ramificação diferente, um pouco folclórico-mágica.
Deste mesmo ramo, o que tive vontade de ler, e li, foi o The icarus girl, de Helen Oyeyemi. Gostei da capa e peguei na livraria. Aí gostei da sinopse: pronto. O preço da edição importada era pornográfico. Decidi esperar sair aqui.
Daí a duas semanas, vejo ele na vitrine: A menina ícaro. Depois de exultar por não terem traduzido o título (valha-me) como A garota ícaro, eu o comprei.
Acho que eu estava esperando demais, porque não gostei tanto. Gostei de alguns detalhes. Gostei da autora não ter explicado tanto tudo. Não entendi porque menina ícaro no final (aí parei para pensar: é que ela "voou perto demais do sol" e "se queimou"). A tradução ficou boa em alguns pontos, mas ruim em outros. Devem ter dividido entre vários tradutores sem uniformizar o estilo no final. É de uma editora nova, a Intrínseca. Sim, como produtora editorial eu reparei que o projeto gráfico foi suuuuper ousado e impresso na GeoGráfica (os trocadilhos!). O que não entendo é porque as fotos de capa brasileiras desses livros místico-africanos têm que ter crianças negras tristonhas e sombrias na capa. Certo, as histórias são tristonhas e sombrias, mas eu não colocaria um garotinho branco de cara fechada perdido nas trevas na capa de um David Copperfield, por exemplo. Enfim, trocando os capistas e tradutores a Intrínseca vai bem.

8.8.06

Isto mereceu um post separado.
Vi o Fernando Henrique Cardoso, em 87 ou 88, criticando o governo Sarney com base em Maquiavel. Se eu tivesse lido isso e pudesse votar em 1994 (eu tinha 11 anos), votaria no FHC para presidente. Afinal, quem conhece Maquiavel assim a fundo acaba aplicando o mesmo quando tem oportunidade. E isso é bom, pois do que precis(áv)amos e(ra) de uma pitada de pé no chão, de concreto. Brasília é concreto.

O moralista angustia-se porque a política não se enquadra nos seus valores morais individuais e termina por renunciar à própria ação política. Dessa forma, contribui objetivamente para que prevaleça outra política.
"Eu nasci há dez mil anos atrás"
(onde o deus-Google ainda não alcança)

Tenho ido à Biblioteca Nacional pesquisar coisas, seção de periódicos. E é incrível o que não chega até nós, nós cidadãos-do-Google que achamos que tudo está ao alcance dos dedos. Ainda não. Mas a tinta e o papel não mentem, ainda mais os que estão se esfarelando.
Achei uma matéria assim:
"Chico Buarque dá um soco no Millôr."
Outra:
"Guinchado por parar em fila dupla, Darcy Ribeiro exige que guincho traga seu carro de volta".
Nossos heróis.
As coisas se repetem. Achei notícias da Guerra do Líbano e mil explicações para termos perdido na Copa (em 46, 66 e 86). Nos anos 70, uma "massagista" lançava "Homens que passaram por minha mesa de massagens" ou algo assim, obviamente plagiando Bruna Surfistinha com antecedência.
Vi a cafonalha e a burrice: estalinistas fuleiros sendo criticados somente pelo guerreiro Nelson Rodrigues e os preconceitos descarados (Colégio Sacré Coeur ao Última Hora: "não adianta insistir, não admitimos negrinhas").
Vi vergonhas: elogios ao Collor e previsões furadas (a guerra mundial foi em agosto de 1985, você viu? E do triunfo da fast-food nos anos 90, você soube? e a calcinha de papel, ainda não está usando?).
Vi consciências nascendo: a AIDS chegando (88), o câncer se espalhando (Correio da Manhã, 55: "substâncias derivadas do petróleo sob suspeita de causar câncer"), a ecologia surgindo (primeiro no Zero Hora, o sul é mesmo mais evoluído).
Vi também coisas lindas, propagandas criativas e clássicas, críticas de Antonio Candido, crônicas de Fernando Sabino, fotos geniais, brilhantes projetos kamikazes sempre no vermelho ("Jornal das Letras"), ensaios inteligentíssimos.
Não sei como encerrar isso, talvez porque ainda não acabou. E, bem, esperemos que não acabe. Gosto de pesquisar. Dedilhar índices onomásticos, questionar a base de dados, inventar métodos de facilitação, obter resultados inesperados (o melhor da pesquisa: a idéia para a próxima).

3.8.06

No escuro

Eu encomendei um livro de cada principal autor de ficção científica para ver se me interessavam. Que pecado, todos os que eu considerei "principais" só existiam em sebos. Comprei-os assim mesmo, no escuro, e até agora estou adorando. Um deles foi Os três estigmas de Palmer Eldritch, de Philip K. Dick, e outro Os túmulos de Atuan, de Ursula LeGuin.
Este, da LeGuin, não é bem sci-fi. É o volume dois de uma trilogia em terras mágicas. Parece um pouco com Marion Zimmer-Bradley (sem tanta putaria), um pouco com Tolkien (sem ser tão arrastado), mas um bocado com os Livros da Magia de Neil Gaiman.
É a história de uma menininha, Tanar, que é arrancada de sua casa por um culto para se tornar a sacerdotisa Arha, "a Devorada", a serva dos deuses das trevas, os Sem-Nome. Ela vai crescendo no meio do deserto árido de Atuan, sobre as Tumbas, entre outras meninas e mulheres (o culto só tem mulheres e servos menores eunucos). Já crescida e com os ritos todos na cabeça, ela encontra um homem andando pelo labirinto proibido das Tumbas, em que habitam os deuses Sem-Nome; por essa afronta ela deve matá-lo, mas por algum motivo não quer fazer isso.
Soa bobo, mas há coisas impressionantes no romance. Não é arrastado e descritivo como Tolkien; não tem romance entre Tanar/Arha e o homem do labirinto, embora a sinopse sugira isso; a confusão na cabeça da menina, criada naquele ambiente de gente doida, é passada de forma bem clara. Não se gasta quase nenhum espaço explicando os rituais, mas sim a "vida ascética" das sacerdotisas e suas pequenas alegrias e atritos. Os conceitos e motivações em que acreditam os personagens são passados sem artificialismo. Tanar/Arha não é nem mocinha inocente nem temptress-de-negro: ela é uma pessoa tentando achar o seu caminho, seguir sua intuição, e errando. Ela é mimada, infeliz, rancorosa, impulsiva, um monte de coisas. O "homem do labirinto" também é bem construído.
Uma coisa que me irrita nos romances que vejo por aí não existe nesse. A opinião sobre os personagens se forma na cabeça do leitor antes de ser "verbalizada" por Tanar/Arha. Por exemplo, no ponto em que Tanar/Arha tem o insight de que a sacerdotisa Kossil é uma filha-da-puta, você já entendeu que Kossil é uma boa duma filha-da-puta governista que todo mundo do livro odeia pelo que a autora já apresentou antes, sem juízos de valor óbvios: os gestos, as falas de Kossil.
Claro que num romance realmente ousado o fato de Kossil ser filha-da-puta nem precisaria ser verbalizado; creio que o bom autor deixa tudo na mão do bom leitor. Os túmulos de Atuan não são luxo literário como Ada, mas no quesito "literatura de magia" dá de dez mil em um Paulo Coelho. Dele eu li Brida, por exemplo, e a coisa parece um desses romances de banca: toda e qualquer relação entre homem e mulher acabará em amor e/ou sexo - este minuciosamente descrito, é claro. É um vício hollywoodiano de que "para agradar o público feminino tem que ter interesse romântico". Porra nenhuma.