11.3.08

Retórica I

Eu tinha prometido isso há algum tempo, mas esqueci. Quando mandei o A feia noite para a editora, em 2006, escrevi duas críticas ao meu próprio livro, uma positiva e uma negativa. Eu estava cursando Redação Técnica 2 na época, quer dizer, Retórica. Encontrei agora e achei divertido. Taí.

NEGATIVA

Simone Campos fez um sucesso considerável com seu primeiro romance, No Shopping, publicado aos 17 anos. Era uma crítica ácida à sociedade de consumo toda passada em um shopping center. Freqüentou as mídias largamente e vendeu o bastante para cobrir o investimento da pequena editora que bancou a publicação.

Com tudo isso, é certo que Simone se sentiu muito pressionada pelas expectativas quanto ao novo livro, A feia noite. Talvez isso explique o hiato de cinco anos (povoado por contos esporádicos) entre No Shopping e este segundo romance, A feia noite. Talvez.

A história de A feia noite é a de Francisco, recém-separado que leva a jovem Maria Luiza para casa. Ele quer salvá-la (a princípio, não sabemos do quê), mas esbarra nos próprios desejos há muito reprimidos. O título refere-se, de maneira irônica, à mania de Maria Luiza de trocar o dia pela noite.

Como se pode ver, a história não se parece nada com a do primeiro livro. A estrutura demonstra ligeira semelhança, e só. É evidente que a autora fez um esforço para não se repetir. Suas limitações como contadora de histórias, antes mascaradas pelo picote situacional de No Shopping, neste romance ficam patentes. Algumas vezes, o tom de uma cena destoa da imediatamente anterior; cenas que, isoladamente ou num romance não-linear, poderiam até funcionar.

Este, aliás, parece ser um dos grandes problemas de A feia noite. Pretensão. Pretensão de parecer antigo, sofisticado e linear. Pretensão filosófica, sendo que a autora parece não ter estofo para tanto.

O livro não é um equívoco completo. Existem passagens, como a de x e a de y, que comprovam o talento da autora. Pode ser que fale mais a leitores da sua geração; mas por enquanto, o melhor é esperar pelo terceiro.
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(Não estou sendo palhaça, nem assumindo ter publicado algo ruim “por publicar”. É que eu compreendo as restrições que algumas pessoas terão a esse livro. Mas um livro que sou eu não pode ter aprovação unânime. É como se ele portasse minhas idiossincrasias, que também não é todo mundo que suporta.)
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POSITIVA

Em No Shopping, Simone Campos atacou uma (anti-)unanimidade: a sociedade de consumo. Evidente que foi coberta de elogios pela mídia e vendeu centenas de livros. Desta vez, as baterias se voltam para a chamada Cidade Maravilhosa. Isso mesmo. Nem todo mundo vai perceber, mas A feia noite é a antítese de tudo o que se associa a "Rio de Janeiro": sol, praias, afabilidade, molecagem...

As alfinetadas também se estendem à política. Francisco, o personagem principal, é "profissionalmente mau": consultor político. Maria Luiza, a menina que ele acolhe em seu apartamento, é prostituta – e com o tempo as afinidades entre as duas profissões se tornam mais que explícitas. Para completar, o livro se passa em 2002, ano eleitoral.

Mas e quanto ao mérito literário? Afinal, de nada vale uma obra catalogar todas as mazelas do mundo se ninguém agüentar ler duas linhas sem cair no sono. Também aí não há problema. Talvez seja a espiral obsessiva de Francisco, talvez seja a qualidade instigante e humana dos personagens; o fato é que o leitor acaba envolvido.

As referências são boas. Há contribuições de As mil e uma noites e Alice, de Carroll; uma certa reverência aos onipresentes anos 80; e uma declarada influência dos gibis japoneses (mangás). As passagens "filosóficas", mesmo se tornando um tanto pesadas às vezes, soam consistentes. O realismo não foi tentado; o tom é de fábula, e isso pode confundir alguns leitores acostumados com o estilo da geração a que Simone pertence (ou foi pertencida).

Com tudo isso, pode-se dizer que A feia noite é um livro negativo. Não propõe soluções; apenas tenta fazer arte com o que encontra. O resultado é bastante animador, embora seja só o segundo livro de Simone Campos; agora a espera é pelo terceiro.
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(A feia noite é um livro tomado pela retórica. Quem o lê sai convencido de alguma coisa, não necessariamente do que eu saí ao escrevê-lo; mas eu o escrevi exatamente com essa intenção de deixar as pessoas convictas e duvidantes ao mesmo tempo. Então mais um motivo para o joguinho das duas críticas.)