16.12.10

Entrando na passarela, noto por trás do ombro de uma mulher que seu antebraço está engessado. Só que são dois antebraços para o mesmo lado e muito finos, em formato de coxinha de galinha. Se apossa de mim uma compreensão terrível: que são duas pernas engessadas até a coxa, pernas de bebê. O bebê, do qual nunca vejo o rosto, tem no máximo três meses. Quero sair dali. Mas a mãe confabula com a colega bem na entrada da passarela, impedindo a passagem; presa ali, eu não consigo parar de olhar, pensando bebês de três meses não andam, sequer engatinham, mal viram no berço, que diabos terá acontecido com esse para quebrar as duas pernas!!!! Ando adiante que nem pata, cambaia, sentindo a mente tentar produzir sentido daquilo com tanta força que produz um incômodo físico: um pai violento, uma babá bêbada, um acidente grave por descaso, uma malformação congênita, um médico maluco – quem engessa um bebê? Não me recupero por um bom tempo. Continuo tendo flashes do momento em que entendi as duas perninhas com gesso até a coxa. Com. Gesso. Até. A. Coxa.
Isso não foi um sonho.

26.10.10

Eu estava com minha mãe na cozinha do sítio após um dia cheio de movimento, de visitas. Lavávamos louça juntas. Nisso, ouvi chamarem meu nome lá fora: “Simone. Simone.”, mas não tinha certeza. Fiz aquela cara de cão perdigueiro procurando.
– É a Jacinta – disse minha mãe sem parar de lavar pratos.
– Quem? – eu não conhecia nenhuma Jacinta.
– É a Cíntia que está te chamando. Vai lá.
Larguei a louça e fui ver quem era. A grade não pertencia ao sítio real, era a grade do Museu da República; do outro lado estava uma moça - a Cíntia. Filha da empregada doméstica que tivemos quando eu era pequena e vinha brincar comigo de vez em quando. Por que ela, pensei. Agora adulta, tendo acompanhado a minha idade, ela continuava alta e magra, mas seu rosto era de criança-velha de filme de terror. Eu já sabia o que me esperava naquele tipo de sonho – um susto escabroso, escatológico e arbitrário – susto criativo – mas era incapaz de não me aproximar. E andei na direção dela. Passo a passo.
– Simone – disse ela mais uma vez. Estaquei. Mas dei mais um passo adiante, ao que ela, agressiva, reagiu: – Pirrranha.
(Ela tentou me chamar de piranha e resvalou no R.)
Ainda assim continuei avançando. Quando cheguei bem perto, a cara e o corpo dela pareceram se achatar em 2D e ela, após recuperar a forma original, fugiu aterrorizada se esgueirando junto à pedra. Bem rápido.
Foi um sonho de febre. Acordei empapada, já sem ela.

5.9.10

Baila comigo

Sabe Baila comigo, da Rita Lee, trilha de novela, com aquele arranjo meio órgão Roland + salsa-pra-turista com SOLO DE FLAUTA?
Bem, acho uma música boa.
Serinho. Só precisa de outro arranjo, outra voz - uma versão aterrorizante seria bem-vinda.
Hoje ouvi de novo, lembrei dela. Essa parte em especial me parece fenomenal e subvalorizada:

Se Deus quiser
Um dia eu morro bem velha
Na hora H
Quando a bomba estourar
Quero ver da janela
E entrar no pacote
De camarote...
E tomar banho de sol
Banho de sol,
Banho de sol,
Banho de sol.


Quer dizer, pulsão de morte, bomba H, fritar na fissão nuclear ("sol"), e flautinha. E baticum de bongô ao fundo, e aquelas duas barrinhas de madeira arredondada batendo plic, plic.
Que subversão, meu deus. Tocava na Antena 1 quando eu comecei a estudar física (7a, 8a série).

22.8.10

Trecho de "Olho de gato", de Margaret Atwood

"No fundo tem duas entradas grandiosas, todas entalhadas e com aplicações floreadas sobre as portas, inscritas com letras curvas e solenes: MENINAS e MENINOS. Quando a professora toca a sineta de metal no pátio temos que fazer filas de dois por classe, meninas em uma fila e os meninos na outra, e entramos alinhados por nossas portas separadas. (...)

O único momento em que vejo meu irmão na escola é na fila. Em casa nós improvisamos um telefone com duas latinhas e um pedaço de cordão que passa pelas duas janelas de nossos quartos mas não funciona muito bem. Colocamos bilhetes embaixo da porta um do outro, escritos na linguagem cifrada dos alienígenas que é cheia de X e Z e precisa ser decodificada. (...)

Mas durante o dia, eu o perco de vista assim que saímos pela porta. Ele vai na frente, jogando bolas de neve; e no ônibus fica lá atrás, num remoinho barulhento de meninos mais velhos. Depois das aulas, depois que passou pelas lutas exigidas a qualquer novato em qualquer escola, ele sai para ajudar no combate aos meninos da escola católica vizinha. Ela se chama Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, mas os meninos de nossa escola a rebatizaram de Nossa Senhora do Perpétuo Horror. Dizem que os meninos dessa escola são muito brigões e que escondem pedras dentro das bolas de neve.

Sei que não devo falar com meu irmão nessas horas, nem chamar a sua atenção ou a de qualquer outro menino. Os meninos se chateiam por ter irmãs mais novas (...) Se for chateado por minha causa, ele vai ter que brigar mais ainda. Para mim seria desleal contatá-lo, ou mesmo chamá-lo pelo nome. Eu entendo essas coisas e faço o que posso.
Assim, fico com as meninas, meninas de verdade finalmente, de carne e osso. Mas não estou acostumada com meninas, nem familiarizada com seus costumes. Fico constrangida perto delas, não sei o que dizer. Sei as regras não ditas dos meninos, mas com as meninas sinto que estou sempre à beira do disparate imprevisto, calamitoso."


Gosto muito desse trecho. Tradução de Maria José Silveira, edição da Marco Zero.

30.7.10

The pale handmaid's tale

Notas do primeiro mês de trabalho:

- Fiz um vídeo do caminho a pé - da subida junto ao cemitério na passarela carcomida sobre seis pistas expressas. Ao contrário do que está no vídeo, sempre olho para a frente.
- Uma fruta por dia no bandejão - tangerina, banana, maçã - descascada e comida com dentes, unhas e faca cega.
- A cadeira, e a postura, são importantíssimas. Disso eu já sabia, mas por tantas horas seguidas isso se torna bem mais evidente. Tive que caçar uma cadeira. E nada de cruzar as pernas, baixar a cabeça ou curvar os ombros.
- Ambiente 99,9% feminino. Nesse mundo o estoicismo é diferente. Torna-se imperativo resistir a comer por ansiedade, por exemplo. Ou saber bloquear a estridência com a mente quando se precisa trabalhar - ou ser multitarefa, trabalhar E estridular alternando miudinho (life skill).
- Peço os trabalhos mais pesados. Quero esvaziar a estante, deixa eu revisar a tradução, me dá o índice onomástico. Levanto para ir pegar dicionário (eu uso muito dicionário). Compro a comida dos outros lá embaixo. Raramente tomo o elevador e quando estou sozinha corro pelas escadas.
- Material de escritório à vontade e em grandes quantidades.
- Ambiente 99,9% nerd (de vários subgêneros).
- A pele atinge o equilíbrio ideal com o ar-condicionado. Quase. É preciso passar hidratante sob os olhos e nas mãos.
- Bebo mais água. Passo mais batom.

Isso não é bem um item. O ambiente ao redor me interessa. Passo por uma porção de estabelecimentos oblíquos. Hoje vi um Diplomata (carro, não chocolate) preto, todo elongado, estacionado na porta duma oficina. E ontem na esquina da empresa identifiquei uma escura papelaria, identifiquei estantes de metal com cara de 1978 e também um cliente: um menininho. Na tentativa de ver o que ele comprava, apertei a vista e descobri que, além de pastas, borrachas e canetas, metade das tais prateleiras continha dezenas de pingas diferentes. Papelaria-bar. Ganhei o dia.

- As baias vão chegar na semana que vem.

25.7.10

female trouble, ou: faz todo o sentido

Meu problema, em suma, é que leio Jane Austen e não acho o sentido. Sério. Leio diálogos e mais diálogos de conluio sentimental sem extrair qualquer prazer, sem detectar qualquer padrão coerente. Não entendi. Qual é a graça? Falho no teste de Turing bonito. Porque Philip K. Dick - ah, esse sim - faz todo o sentido. Leio "Valis" entendendo tudo. Os sinais, as coincidências altamente improváveis, a paranoia, a perseguição, a detecção de padrões. Sim.
Eu estaria perdida como mulher se eu não fosse um androide do tipo que aprende. Sei detectar padrões conhecidos, mas fico presa aos resultados averiguáveis. Por exemplo, SE você devaneia no trabalho e sonha de noite com alguém, SE mal consegue olhar no olho, SE gente a mais disparatada diz que você parece mais bonita do que costume; e SE, ao pensar, ei, isso não quer dizer que estou..., todos começam a acusar olhinhos brilhantes, LOGO você está apaixonada.
Foi bom começar a trabalhar, ainda mais num ambiente 99,9% feminino, porque aprendo mais rápido essas coisas de humano. Já demorei anos para perceber coisas semelhantes. Dessa vez demorei apenas três ou quatro semanas (tarde demais?).
Eu devia vir com manual de instrução. Depois de um tempo, claro, ele teria que ser jogado fora. Androides com defeito indeed.

Ontem estive num casamento e também não entendi nada. Mas what the hell.

19.7.10

one of these things is not like the other

Um amigo me fez narrar toda minha spring break de inverno (que terminou 1 semana após minha entrada no Emprego Estável) e percebi que isso - narrar, eu digo - me fez bem. Ele logo apontou: one of these things is not like the other. E eu concordei. Percebi também, conversando com ele, que jamais, jamais posso relaxar meu autocontrole, e, sabendo disso desde pequena, nunca devia ter caído nessa de "dar só uma espiada" (no abismo) e sim ter continuado com meus exorcismos de sempre.
É tudo muito fácil para uma esquizoide - alguém cuja empatia não vem de fábrica -, até que você percebe que deixou escapar um detalhe por demais importante, correndo o risco de parecer que pensa que é tudo a mesma coisa, quando não pensa, e se ferra bonito, levantando estilhaços que não dá nem para chamar de dano colateral.
Quero esse poder não, obrigada.
Vou ficar bem quietinha e assalariada, e nas folgas vou me submeter aos mesmos exorcismos de sempre. Porque lembrei que decidi ser uma pessoa boa a despeito de qualquer oligarquismo atávico - desde os cinco anos de idade.
Ontem fui a uma festa da minha família e perguntei do meu avô caçador para os meus tios; joguei videogame contra meu padrinho, e perdi; prometi à mulher dele ajudá-la a arrumar adoção para uns gatos. E eu estava gostando. Fiquei com pena de ir para casa. É mesmo uma decisão, questão de empenho, de foco.
Como diz o Ismar: tá tudo bem.
Mas que era uma boa hora para ser poeta, era.

12.7.10

Darel

Estava eu indo pro dentista quando vejo passar um 326 com busdoor anunciando exposição do Darel (Valença Lins). Na verdade, vi primeiro a ilustração, reconheci como sendo dele, e só aí, já empolgada, é que fui ler os dizeres do cartaz. Não é pra qualquer um, vai - digo, ter um estilo tão único que é reconhecível mesmo estampado num busdoor furtivo às duas da tarde na Perimetral.
Darel está no Caixa Cultural - exatamente em frente ao meu dentista. Tive goosebumps com a coincidência.
Aí cheguei lá e nenhum museu abre segunda. Fuén. Depois vou.

Descobri o Darel Valença Lins enquanto paginava jornais atrás de jornais dos anos 80 na Biblioteca Nacional para a editora Azougue. Os cadernos de cultura eram mais recheados naquela época, e bastou uma ou duas reproduções em preto e branco para eu cair de amores pela obra dele e procurar mais na internet. Fiz um post dizendo que ele tinha desenhado uma Maria Luiza (de A feia noite) muito melhor que eu. Depois ele descobriu meu post e me escreveu. Aí eu dei o nome dele pro protagonista do conto Herói, escrito para uma antologia erótica da Azougue que nunca saiu, mas que acabou entrando no Amostragem complexa (ei, eu preciso tirar nomes legais de algum lugar).
Só não entendi a onda BBB de identificá-lo apenas pelo primeiro nome. Mas ok, o que importa é o conteúdo.

E tome reprise da faixa-bônus do Amostragem, caso alguém não conheça.

P.S.: aproveitando a onda de dizer de onde tiro o nome dos meus protagonistas masculinos, revelo que o Miguel do Conto japonês (Mousmé) é inspirado no Miguel dos Karas (do Pedro Bandeira), e o menino gordinho que aparece no Segundo andar é minha versão carioca e classe média do Bolachão da Turma do Gordo (do João Carlos Marinho). Pronto, danei-me para sempre; posso ir dormir.

11.7.10

Apresentação do conto "Deitado eternamente em berço esplêndido", de Simone Campos, a sair na antologia "Escritores escritos" da editora Flâneur. O autor homenageado no conto é H. P. Lovecraft.
Vídeo feito no dia da final da Copa do Mundo, em homenagem ao polvo Paul.

11.6.10

O Mestre e Margarida

O Mestre e Margarita é um dos meus livros preferidos. Li uma edição velhusca, traduzida do inglês, mas sei que agora saiu uma nova da Alfaguara. Está na moda, portanto.
Ontem era um dos únicos três dias que a peça, da CAL, seria exibida - só para convidados - e eu fui, mesmo com medo.
Quando minha amiga avisou:
- Você vai me matar. Tem mais de 2 horas e meia a peça.
Eu já fiquei empolgada.
Achei que no mínimo iam cortar a história do Pilatos com Jesus, ou o número de incidentes pós-chegada de Woland a Moscou. Nada. Colocaram tudo. Precisa, né.
Três horas e meia de peça. No final, me senti a própria Margarida - dizendo, não, não, tudo bem ter demorado, valeu a pena.
Em boa parte funcionou muito bem. Teve soluções cenográficas criativas - como o chão de ladrilhos pretos e brancos também usado como tabuleiro de xadrez. Ou o interrogatório de Jesus por Pilatos com sombras. Aprovei também as referências atuais (grana na cueca, Faustão = Fausto grande, 11 de setembro). Figurino exemplar, especialmente do gato da trupe do Woland e do Ivan. E o teletransporte para Ialta? A transformação da Margarita! A destruição do apartamento do crítico!
Trouxe o programa para casa. De um lado, é uma nota de dólar.
Achei que a Margarita podia ser mais alegre, especialmente no baile, e não curti a saída dela de vassoura. Certas cenas imploravam por edição. Mas deu surpreendentemente certo. Eu veria de novo uma montagem aberta e incrementada.

30.5.10

teoria da comunicação

Estou na segunda graduação, nenhuma vergonha na cara, já entreguei monografia mas adoro produção editorial e por isso não paro de puxar matérias. É tipo um curso livre para mim.
Aí, por estudar na Eco, ouço essas histórias.

Calouro Leite-com-Pera, anticotas, é respondido ironicamente pela Diretora pró-cotas da Eco via Twitter - no que é referido como branco-danoninho. Calouro Leite-com-Pera é secundado por um monte de gente anticota e/ou gente que se sentiu discriminada enquanto branco-danoninho. Veterana Sniper tuíta que vai juntar umas meninas para dar um pau no Calouro Leite-com-Pera. Calouro Leite-com-Pera interpreta o tuíte literalmente e aparece com a mãe na Eco no dia seguinte, ameaçando Eco, Diretora e Veterana Sniper de processo.
Cai o pano.

Sei que é bom demais pra ser verdade, mas juro: não é fruto da minha imaginação. Mui me ufano de estudar nesse lugar.

Tenho a teoria de que esse choque de civilizações se deve à aposentadoria do professor Saboga, coisa por que tanto torcemos quando jovens e ingênuos.
Nesse singelo post de 2004 temos a definição abreviada do Saboga:
"Pega os calouros, 1o período. Não importa o ano, reprova 80% de uma turma e 50% da outra (aquela com a qual ele simpatiza mais)."
E acrescento: aprovações e reprovações eram efetuadas aleatoriamente, com comentários desmoralizantes também aleatórios em caneta vermelha, nas margens.
Ele exigia papel almaço.
Encadeava cigarros (podia em 2001) e percorria o espaço frontal com passos abertões, ida e volta, nas primeiras aulas - que eram as únicas expositivas.
Depois começavam os textos.
Quem fizesse perguntas sobre eles podia ser chamado de burro antes de mais nada. Ainda assim, ele exigia perguntas.
Nessa fase ele abandonava a sala quase no meio de uma frase, com 15 minutos de aula, após requerer perguntas que os aterrorizados alunos não tinham coragem de fazer.

Outros fun Saboga (non)facts:
* Ele deu aula para Fátima Bernardes, por exemplo. Isso é documentado. Há um tocante depoimento dela num livro que sempre circulava entre os calouros, às vezes apenas o excerto na lista da faculdade.
* Fofoca sem fundamento: certa vez, uma menina teria gritado no meio da aula que ele devia ter o pinto muito pequeno pra tratar os alunos daquele jeito e ganhou dez na prova.
* Fofoca sem fundamento [2]: uma menina por quem ele supostamente se apaixonara (porque ela manjava de filosofia alemã) teria estado na casa dele e relatado diversas estranhezas, entre elas, que ele não possuía televisor. No dia seguinte do jantar com ela (que diz não ter dado), ele teria declarado que daquele momento em diante jamais voltaria a reprovar um aluno.

Bem. Voltando à vaca fria.
O abuso ritual exercido pelo professor em questão era essencial para subir a taxa de niilismo ("resiliência") dos Calouros Leite-com-Pera. Quando, chorosos, eles se aprochegavam da autoridade mais próxima (o então Diretor do Departamento, professor José Henrique) e ele dizia estar de mãos atadas, e depois galgavam de joelhos o Gólgota da hierarquia acadêmica - Diretor de Graduação, Diretor da Eco ou até o Reitor - apenas para encontrar mais evasivas, algo se quebrava dentro deles: o último vestígio da sensação de protetorado infantil. Aqui é a vida real, rapaz. Ela não é justa. Mas nem por isso você pode correr para a saia da mamãe.
Isso sim era educar para a vida.
Aliás, o nome da matéria dele era Realidade Brasileira.

Eu aprendi minha lição. Mas ah, os velhos mestres se vão e os pupilos não se mancam de encontrar os próprios...
A Eco era uma sociedade pós-apocalíptica, pós Hiroshima. Agora misturou tudo. Tem gente com o brilho da esperança no olhar.
Vai dar merda. Uma merda possivelmente interessante.
Eu, por exemplo, sou anticotas (pró-educação básica boa para todos) e anticalouroleitecompera. De que lado eu me posto? Metade pra cada lado, só se for.

19.5.10

pílulas grandes demais para o twitter

O Irish pub é o McDonald's da manguaça. Para o gringo perdido num país estranho, os arcos dourados da lanchonete são uma visão oásica, que promete aplacar sua fome sem lhe dar diarreia; da mesma forma, as letras esverdeadas de um Irish pub prometem ambiente climatizado sem muita piscação de luz, um álcool confiável e, quem sabe, paquera.
Irish pubs em todo lugar. Há no Rio de Janeiro, há em Porto Alegre, há pelo menos dois em Tours, no interior da França. Eu gostaria de ver um Irish pub chinês.
Em 2008 eu estive num Irish pub na Irlanda. Quer dizer: estive em mais de um, mas esse foi o mais parecido com a franquia mundial. Achei chato. Geralmente as pessoas que atingem aquele nível de embebedamento já teriam desmaiado há muito tempo; no Irish pub irlandês elas estavam de pé. E falando.
Eu não tinha bebido o suficiente para apagar a experiência da memória. Ninguém foi inconveniente, veja bem; mas toda a wit foi substituída por drivel, jogos com moedinhas e filas intermináveis nos banheiros. Chato.

Isso me lembra os "botequins cariocas" que, na verdade, são uma invenção paulista posteriormente reimportada. Vocês sabem, aqueles bares todos fechados (por causa do inverno), com decoração em madeira e mezanino que servem petiscos "legitimamente cariocas" a preços de delicatessen nova-iorquina, e chopp da marca que lhe ofereceu maiores descontos (mas com forte ágio para o consumidor final).
Oh, sim, eles sempre põem "carioca" ou "Rio" no nome. Ou usam o calçadão, o Cristo, o Corcovado no logotipo.
É lá que os assalariados e mauricinhos preferem beber hoje em dia; é mais asseado, mais selecionado; dá para levar as meninas e, supostamente, não tem que ficar cuidando da bolsa (pivetes não têm acesso). Eles vêm se espalhando pelo Rio feito praga, substituindo botecos sujos. Se você não bebe o suficiente, logo vai notar que o atendimento é horrível e a comida, além de demorar, é, com muito boa-vontade, mais ou menos. Prefiro levantar e ir lá no balcão pegar uma porção de BONS bolinhos de bacalhau do que esperar meia hora por um filé esdrúxulo que nem vem no ponto pedido. Em suma: também sou fresca, mas acho que a frescura dos outros está muito direcionada às aparências, em vez de ao conteúdo.

* * Dislexias recentes de nota * *

"O colapso da Rússia" = "o cosplay da Rússia"
FISK = FUCK
Omo Multiação = Omo Mutilação

3.5.10

Filmes obscuros favoritos

Inspirada por esse post do Xerxenesky, que me fez descobrir Brick, resolvi compartilhar alguns filmes obscuros por que sou obcecada para que vocês possam assistir. Três ou quatro, para começar.
Devo dizer que adoro fotografias bem cuidadas (eye candy), mas não apenas. Se não vejo conteúdo, não me conquista. 2046 (Kar Wai Wong) é o exemplo mais gritante do filme que acho apenas mais um rostinho bonito.
Dito isso, passemos aos filmes que acho realmente bons.

A última vida no universo (Ruang rak noi nid mahasan) - Pen-ek Ratanaruang


Sou fã do tailandês Pen-ek Ratanaruang por causa desse filme. Para mim, é como uma adaptação não-oficial do meu livro A feia noite - ok, saiu antes, mas conheci o filme quando estava com o livro praticamente pronto.
Outra forma de vendê-lo seria dizer que é um Encontros e desencontros (Lost in translation) que deu certo, com um toque de Lucrecia Martel (a diretora argentina que filmou O pântano).
É um filme de andamento lento com momentos líricos e brutalmente engraçados, que brinca com filmes de yakuza (máfia japonesa). Som memorável. Não chega a ser surrealista: conta historinha. Bem devagar.

Outro dele de que gosto: o 6ixty-nin9 (Ruang Talok 69). É uma comédia sombria cheia de piadas internas tailandesas (você ri de Monty Phyton, não?). Também com historinha.

Onde obtê-los: No torrent mais próximo de você.



May - Lucky McKee


É uma espécie de comédia romântica indie que descamba para o terror total. Tem citação direta a Dario Argento e, para quem curte, Anna Faris morena. Definição: Carrie, a estranha mais adulto com enxertos (ha, ha) de Frankenstein. Saiu aqui em DVD com um título que me recuso a repetir - é simplesmente muito equivocado.



Phantom love - Nina Menken


É sacanagem indicar um filme que nem sequer existe em DVD, muito menos para baixar. Mas você pode assistir o trailer e algumas cenas, como a da cobra (Snake), no MySpace. O filme é de um preto-e-branco lindo e surreal. Tenso. Te deixa na ponta da cadeira, especialmente por causa do som. Como explicar... é uma espécie de Anticristo só com o lado feminino da questão, com bem menos gore mas nível de opressão equivalente. Vi no Festival do Rio, não sei em que ano. Quando sair o DVD, compro na hora.

27.4.10

amostra grátis

Escrevi o texto abaixo tentando cavar espaço numa revista (preciso de uns cobres), mas parece que não vai sair. Então resolvi liberar aqui antes que ficasse velho. Enjoy.

A brasilianização da diplomacia
Nosso legado: relaxe, tome uma caipirinha.

A carreira diplomática recende a glamour. Muita gente a cobiça, especialmente aqueles não sabem muito bem o que querem da vida. É uma espécie de jornalismo, só que de luxo. Recepções e jantares, elegância, cosmopolitismo, passagens de avião grátis a perder de vista: quem não quer?

Itamar Franco, depois do fim da sua presidência quase acidental, quis. Fez questão de um posto diplomático - em Portugal, por ser o português o único idioma que dominava (dizem as más línguas). Vinicius de Moraes também entrou para a carreira; disse rindo em seu depoimento ao MIS que aquela lhe parecera "uma carreira para vagabundo", por meio da qual poderia viver "sem fazer coisas cacetes". Também disse, na mesma chave, lutar para não ser promovido, porque nos escalões menores ninguém lhe prestava atenção*.

Pelo visto, ele estava errado. Em 1969, dois anos depois desse depoimento, Vinícius foi expurgado do cargo pela ditadura. Morreu em 80, sem fazer coisas cacetes mas também sem ver seu caso resolvido. O arremate veio em 2010, quando foi reintegrado aos quadros diplomáticos brasileiros com promoção a embaixador, o que acarretou um aumento na pensão de seus herdeiros.

Apesar deste final ser um tanto irônico para um homem que disse não suportar a ideia de chegar ao alto escalão, não há dúvidas de que Vinícius ajudou a espalhar um certo estilo musical que nasceu aqui por todo o globo (notadamente, elevadores) à sua maneira: cantando, brindando e paquerando. Dá a impressão de que funcionou melhor.

A diplomacia brasileira tem um histórico de tentar extirpar a brasilidade de seus modos de agir. É como se dissessem: Não pode isso, essa malandragem toda. Esconde essa ginga, larga essa birita. Aqui nós somos sérios, eficazes.

Tudo isso me vem à mente quando leio notícias recentes sobre nossos esforços diplomáticos. O Itamaraty vem admitindo pessoas de diferentes cores e classes sociais, que tenham formações e falem idiomas diferentes da palheta tradicional. Mas o que me intriga mesmo são declarações como essa:

"Vocês aqui na Europa não deveriam isolar o Irã. Muito pelo contrário. Vocês não podem deixar um louco solto. Tem que ir lá, segurar o homem, pelo menos uma vez a cada quatro meses. É o que eu faço com o Chávez. De vez em quando, vou lá na Venezuela segurar as pontas" disse Lula em março a um dirigente europeu.

Há pouco tempo saiu uma foto do ministro Miguel Jorge presenteando a camisa da seleção brasileira a Ahmadinejad, que, pela cara, adorou o suvenir. Foi aí que comecei a vislumbrar as intenções dessa nova diplomacia à brasileira.

Ele só quer um amigo

"So ronery" ("Tão sozinho"), canta o ditador norte-coreano Kim Jong-il na animação de marionetes Team America, criação da dupla de South Park (Trey Parker e Matt Stone). O poder é mesmo solitário. E o tratamento de gelo (e, falhando isto, fogo) aplicado por países como os EUA como panaceia para os males do mundo parece ser feito para deixar governantes antidemocráticos ainda mais isolados.

Segundo A arte da guerra de Sun Tzu, ao se cercar um exército sempre é preciso deixar uma saída livre, pois um inimigo desesperado é capaz de tudo. Privar "pessoas difíceis" de todo e qualquer poder pode levá-las ao desespero. Isolá-las "até que mudem" pode levar a guerras frias ou ao terrorismo. Isso também vale para escalas menores – a de jovens isolados que saíram metralhando os colegas, por exemplo. Desequilibrados? Sem dúvida. Mas, quem sabe, se tivessem alguém com quem conversar, a tragédia poderia ter sido evitada.

Começo a desconfiar que o plano brasileiro, se é que há um plano, consiste em corromper a integridade fanática de pessoas como Ahmadinejad com amizade, futebol e, quem sabe, mulatas, caipirinha e um pouco de música e sol. Maquiavelismo moreno! Se for isso, meus parabéns. A sedução ocidental nunca foi tão perniciosa. Nosso tanto faz malemolente tem o condão de induzir à procrastinação e à permissividade – sei disso melhor que ninguém. Se tanto faz, porque não viver mais um dia? Por que explodir o mundo hoje? Por que não deixar a revolução para amanhã? Hein, hein?

Todos querem deixar sua marca no mundo e valsar no grande baile de formatura da humanidade. Ninguém quer uma Carrie no seu baile, mas se acaso ela vier, é favor não jogar um balde de sangue de porco em cima dela.

* Do livro Vinicius de Moraes, coleção Encontros, Ed. Azougue. Organizado por Sérgio Cohn e por mim.

14.3.10

Inteligível

Quantas vezes não ouço gente me dizendo: ahn, ele(a) é pobre, não teve as chances que você teve, deixe ele(a) fazer um serviço ruinzinho/marromenos. Ouço gente falando isso com relação a profissões as mais diversas, de revisores a eletricistas. Eu penso: e os pobres ou ricos ou remediados que são bons no que fazem? Devo tirar a chance deles de se destacarem, mostrarem serviço e ganharem dinheiro fingindo que os ruins são bons? Eu hein.
Eu gosto de gente boa no que faz. Minha faxineira é muito boa faxineira. Meu pedreiro é muito bom pedreiro. Eu os recomendo pra todo mundo. O que acontece, no mais das vezes, é que eles recebem serviço demais e acabam subindo a taxa que cobram ou não aceitando serviços. Eu pago - porque não suporto incompetência.
Meu pedreiro é inconformado com o tamanho da minha pia, que parece um bebedouro de pássaro. Ele já me perguntou algumas vezes porque eu não pus uma pia maior. Ontem resolvi responder sucintamente:
- Jogos de poder com a minha mãe.
Pronto. Até por já ter trabalhado para a minha mãe, ele entendeu na hora e riu. Vendo que tinha sido entendida, desenvolvi mais um pouco, descrevi a cena para ele - minha mãe na loja dizendo que estava pagando a reforma, então ia me comprar ou uma cuba quadrada ou aquelas que ficam para fora do mármore, que eu acho horrorosas; eu insistindo numa pia normal, oval; e no fim, por birra, ela me comprando uma louça de pia do tamanho e formato de meio Júpiter de sistema solar ginasial.
Ah, hoje em dia ela vem aqui e reclama da minha pia pequena. Fim.
Pelo menos meu pedreiro riu a valer e elogiou expressamente o "jogos de poder". E terminou seu serviço.
Em suma, foi um bom momento, fiquei feliz em ser compreendida.
Eu fico feliz com pequenas coisas, mas coisas que são danadas de difíceis de conseguir.

11.3.10

Maldito comentarista anônimo

Já quando foi lançado, em 1605, o primeiro Dom Quixote foi um tremendo sucesso. Esgotou dez edições em castelhano. Seus personagens apareceram em bailes de máscaras já no ano seguinte. Foi traduzido rapidamente para inglês e espanhol - e só não o foi para o português porque, naquela época, a Ibéria era praticamente bilíngue. Os portugueses liam castelhano numa boa*.
Cervantes deixou o final do primeiro Quixote em aberto, à moda das franquias cinematográficas atuais. Com o sucesso, Cervantes começou a escrever uma continuação no passo dele. Acontece que, antes de sair o segundo volume do Quixote, saiu uma suposta continuação, de má qualidade, escrita por um tal de Avellaneda - que, ainda por cima, era um pseudônimo.
Dá para imaginar que Cervantes tenha ficado queimado com isso. O que ele fez? Tentou descobrir a verdadeira identidade do sujeito? Processou o fidaputa para retirar aquilo de circulação? Moveu uma campanha de difamação pública do canalha?
Não. Ele resolveu inserir aquilo na história.
No segundo volume, Dom Quixote fica sabendo que andava circulando um livro contando suas aventuras (o primeiro volume, por Cervantes), e ainda um outro que contava "tudo errado" (o de Avellaneda).
Gênio que era, Cervantes bolou uma solução perfeita para o problema do direito autoral - não a pirataria, mas o problema do "dono da ideia": mostrar que você é muito melhor e por isso é o legítimo titereiro da ideia. E, se não inventou a metalinguagem, pelo menos a usou de forma brilhante, no melhor estilo sua-inveja-faz-a-minha-fama. E isso em 1615!

As informações desse post vieram das edições da Editora 34, volume um e volume dois. Isso é o que a orelha diz, e o prefácio. Estou começando o segundo volume agora - avidamente, é claro.

*A versão portuguesa só veio em 1794, quase duzentos anos depois, com o fim desse bilinguismo.

2.3.10

As pessoas não sabem

Se você está envolvido com produção editorial e tradução, como eu, já deve ter ouvido falar do blog da Denise Bottman. É um blog que coteja e denuncia plágios maquiados, nos quais se muda uma pequena porção das palavras para fingir que houve uma tradução nova e não pagar os devidos direitos ao tradutor ou a seus herdeiros.
Pois bem, duas das editoras moveram inacreditáveis processos contra Denise por esta ter denunciado crimes. Foi lançado um manifesto online contra isso: assine-o, se puder.

Outro dia uma amiga estava falando da coleção de bolso da Martin Claret, e de como, apesar de feios, os livros eram baratinhos; quando mencionei que alguns eram fruto de plágio ela quase caiu para trás. Nunca tinha ouvido falar do imbróglio. Aproveitei para indicar o Não gosto de plágio. Minha amiga, indignada, abjurou os livros da editora.
As pessoas não sabem dos casos de plágio disfarçado e continuam comprando livros das editoras "espertas". Quando ficam sabendo, a reação é indignação e rejeição aos produtos denunciados. Então conte para eles. Promova o blog da Denise. É um bem que você faz.

Se isso te faz ferver o sangue, outra prática afim em que é bom prestar atenção: sebos que recebem livros roubados de bibliotecas. Não posso imaginar sacanagem maior.
Quando estiver folheando livros a esmo e encontrar algum com carimbo de instituição (e frontispício arrancado: suspeitíssimo), avise o responsável e ouça bem a resposta dele. Isso aconteceu comigo: o sujeito disse que recebeu um "lote muito grande" de livros e não pôde verificar um por um. Ou seja, a desculpa dele foi preguiça e ignorância. Para mim, é óbvio que o dono de sebo tem que verificar os livros que chegam um a um, e os mais atentos (e honestos) adotam práticas ainda mais rigorosas* para evitar receber mercadoria roubada. Não comprei mais naquele sebo. Se eu lembrasse o nome dele, eu diria, mas a verdade é que faz muito tempo e, não lembrando bem, não quero acusar em falso.
Informação é um negócio sério. Quanto mais disseminada, mais fica difícil a pessoa se fazer de boba ("mas eu não sabia...").


*Acesso para assinantes da Folha de SP ou do UOL

21.2.10

Quixote says

Quanto mais que, se eu bem entendo, este vosso livro não tem necessidade de nenhuma dessas coisas que dizeis que lhe faltam, pois todo ele é uma invectiva contra os livros de cavalarias, dos quais nunca se lembrou Aristóteles, nem disse nada São Basílio, nem teve notícia Cícero, nem contam nos seus fabulosos disparates as pontualidades da verdade, nem as observações da astrologia, nem importam nele as medidas geométricas, nem a confutação dos argumentos de que se vale a retórica, nem tem para que predicar a ninguém, mesclando o humano com o divino, que é um gênero de mescla do qual não se deve vestir nenhum cristão entendimento. Tendes tão-só que vos valer da imitação naquilo que fordes escrevendo, pois, quanto mais perfeita ela for, tanto melhor será o escrito. E como esta vossa escritura não mira a mais que a desfazer a autoridade e capacidade que no mundo e no vulgo têm os livros de cavalarias, não há razão para que andeis a mendigar sentenças de filósofos, conselhos da Divina Escritura, fábulas de poetas, orações de retóricos, milagres de santos, e sim procurar que lhanamente, com palavras significativas, honestas e bem colocadas, saiam vossa oração e período sonoros e festivos, tudo amanhado ao vosso talante e intenção, dando a entender vossos conceitos sem os intricar nem obscurecer. Procurai também que, lendo a vossa história, o melancólico se mova ao riso, o risonho o acrescente, o tolo não se zangue, o discreto se admire da invenção, o grave a não despreze, nem o prudente a deixe de elogiar. Enfim, levai a mira posta a derribar a mal-fundada máquina desses cavaleirosos livros, detestados por tantos e elogiados por muitos mais; pois se tanto conseguirdes, não tereis conseguido pouco.
do prefácio de D. Quixote - Cervantes
Tradução de Sérgio Molina - ed. 34

Lindo e exato, isso foi escrito em 1605 e era aquilo de que eu precisava para colocar meu livro novo, Owned!,nos trilhos. Obrigada, seu Cervantes.

D. Quixote está aqui há três bienais. Agora que comecei a lê-lo, sei que vou precisar da parte dois.

23.1.10

Ríastrad

Eu disse há semanas atrás que não curto drama nem gente intensa - mas eu estava falando mais de mulheres. É engraçado como admiro as mulheres frias e reservadas* mas acho que um certo tipo de intensidade cai bem em certos homens.
Ele está lá, bebendo com sua matilha. De repente, surge um mal-entendido e ele tem que ser jogado embaixo de água fria para não entrar no modo Cúchulain. Por quê?
Você vai investigar e vê que algum dos colegas dele fez um comentário maldoso, disfarçado de piada, sobre algo que ele realmente preza. Não o time de futebol. A irmã dele, por exemplo. Ou um comentário racista. Ou simplesmente foi inconveniente e demonstrou que precisa ouvir um calaboca.
O que acontece na maioria das vezes é que não tem nenhum Zidane por perto. O babaca solta seu comentário sujo e não ouve um cala a boca bem-dado nem apanha: é olhado feio por umas três pessoas no recinto, e os leões covardes à sua volta espremem os lábios e engolem em seco: não sentem a ofensa tão intensamente a ponto de reagir. Ou sentem, mas foram educados a não reagir, se importam tremendamente com o que vão pensar deles depois**. Será deficiência hormonal? Medo de se meter em confusão, quebrar umas garrafas?
Depois de pensar muito, creio que o arquétipo do lobo solitário me deu a resposta. O lobo solitário pode até andar em grupo, pode até ser fiel a ele, mas sua aliança final é para com ele mesmo. Ele costuma ser a voz discordante mesmo que isso resulte em climão. A pressão dos amigos não funciona com ele; pelo contrário, até o indispõe mais ainda contra o grupo. O lobo solitário acha que se garante sozinho, e mesmo que não ache, ceder a algo com que não concorda seria pior que morrer estraçalhado.
Frente à conspurcação daquilo que lhes importa, alguns lobos solitários se incendeiam na mesma hora; outros conseguem puxar a própria coleira e civilizadamente expor o X do erro do outro. O que não tolero é quem tem a delicadeza de ficar caladinho perante um ultraje, ou a falta de noção de honra em não reconhecer um.
O lobo solitário berserk costuma ser bom em botar ordem na casa. Coibir o trickster, por exemplo, é com ele. Mas ahn, faria melhor você em jogar todos esses arquétipos no lixo; o que chamam de homem hoje é uma figura perdidinha, depilada, anoréxica e platônica, que te vê como totem prêt-a-porter (tô comendo) e que acha cool dizer o amor é importante porra - sem ter melhorado no reconhecimento de emoções faciais com isso. Muitas abraçam esse novo padrão. Já eu acho total suicídio evolutivo.


Sim, esse texto faz apologia à violência (mesmo a verbal; mesmo a filosófica***), ao tanto que ela é capaz de comunicar que a concórdia não consegue. Gente lesa gera gente lesa.


*Meu conceito de fria e reservada é muito particular; uma mulher pode ser fria e reservada mesmo fazendo filme pornô, basta manter seu eu numa caixa separada (a caixa de Pandora. Assisti a Louise/Valentina ontem, por sinal).
**Isso é totalmente diferente do patético pitboy, que arruma confusão pra se promover e porque sabe que o papai vai dar um jeito pra ele.
***Aniquilar alguém com argumentos; ownar.

17.1.10

Revisores e revisores

Eu adoro revisores. Sou namorada de um, grande amiga de outra, ambos excelentes profissionais. Talvez até por isso eu tenha aprendido a identificar amadores.
Tenho a estranha mania de achar que uma pessoa que é paga pelo seu serviço deve executá-lo da forma mais competente possível ou então mudar de ramo - e isso se aplica do sucateiro ao presidente. Mas sei que errar é humano. Eu mesma vivo falhando nos meus textos, senão não valorizaria tanto um bom revisor - mais de uma vez eles salvaram a minha vida*. O que eu chamo de amadorismo são erros sistemáticos cometidos por falta de empenho ou vocação.

O revisor que quer mostrar serviço

Muito comum. Ele pega um livro que já teve uma tradução ou redação cuidadosa e, para justificar a despesa que gera, muda seis por meia dúzia. Ou pelo menos é o que ele acha. Sei de tradutores que têm por norma nem abrir o livro depois de impresso, com pavor das desfigurações textuais certamente cometidas por um revisor proativo. Seria até estratégico para o autor ou tradutor deixar uns errinhos mais crassos para ele ter como justificar seu serviço, mas caramba...

O revisor sabotador

Além de não encontrar os seus erros, este insere erros que não estavam lá e não usa marcas de revisão, para você ficar bem perdida e ter que pagar outro revisor do próprio bolso.
Por exemplo, se você diz que certa personagem "está deitada no ar condicionado", ele tascará sorrateiramente um hífen entre ar e condicionado, passando a impressão de que a doidinha está deitada em cima do aparelho refrigerador, e não num ambiente refrigerado; e de que o revisor, por falha humana, apenas deixou passar aquele erro do burro do autor.

O revisor rolo compressor

Este tem a mania de aplainar a linguagem literária como se estivesse corrigindo um manual ou contrato. O rolo compressor sempre forçará a grafia mais comum assinalada no seu dicionário: acalento em vez de acalanto, quatorze em vez de catorze, incontinente em vez de incontinênti. Aí "Fulano começa o serviço incontinente" - e nem estava usando fralda geriátrica naquele dia, coitado.
Você também fica proibido de ser informal, repetir termos, inventá-los ou usar regências tiradas da cartola. Se você quer deixar o leitor encucado com uma relação de parentesco até o meio de um conto, o nervoso rolo compressor revelará esse parentesco, através de um aposto, logo no primeiro ato. Porque assim fica mais claro.
E de fato fica mais claro. Depois desse banho de convencionalismo, o texto resulta hipertransparente como um contrato de manutenção de polias. Ele não faz strip-tease nem pole dance: já entra nu e andando que nem pata choca.
Imagino se isso terá alguma relação com as vendagens de livros no Brasil.



Não basta saber português para revisar. É preciso bom senso e atenção. E para a revisão literária, é preciso também noção, ouvido e sensibilidade.

Isso, friso bem, é diferente de brigar com um revisor que entendeu o que você queria fazer, mas acha que tal construção exprime melhor a ideia X, e você discorda. Dessas brigas eu às vezes saio vitoriosa, às vezes derrotada, mas sempre enriquecida (em XP points).

Nem vou entrar na psicologia disso - se o serviço é mal-executado em vingança pela má remuneração, por exemplo. Eu sou escritora, gente, e nenhum dos meus pais é banqueiro. Nem por isso me vingo no leitor ou no editor.



* Como a vez em que eu escrevi que havia um úmero dentro do ventre de Maria Luiza. O revisor, JP, me salvou de escrever ficção científica involuntária.
**Devo um muito obrigada ao JP por me ajudar com esse post. E feliz 9 anos pra nóis!

14.1.10

Clarice Lispector

Um diálogo que dificilmente se tem comigo é aquele começado por "porque você está assim?". Eu digo logo o que me incomoda tão claramente quanto possível. Diria até que sou boa nisso. Não suporto drama e tento jogar limpo. Me esforço para me afastar da savana. Só perco as estribeiras quando vejo que a outra parte não está jogando limpo como eu - aí a savana estará bem pertinho, meu amigo.

Há mulheres capazes de tudo por um pouco de emoção à moda delas. Fazer chantagem emocional ("eu sou feeeia"), flertar e depois chamar o pretendente fisgado de louco, armar planos mirabolantes por um momento de inveja alheia, ficar num canto fazendo beicinho até alguém lhes dar atenção. Oh, será por que somos o sexo frágil e só nos restaram as armas mentais? Nesse caso, pra mim tudo isso podia desaparecer na evolução junto com o dedo mindinho.

Só para deixar claro porque não me identifico com muita personagem e ícone feminino por aí. Também não me resguardo numa imagem de intelectual séria e cheia de certezas que ninguém pode abalar. Acho as duas coisas igualmente chatas. Gosto das minhas descobertas e gosto de ser meio pateta. Gosto também de ficar na minha, o que quem não gosta de ficar na sua não tolera (ô, desde o jardim de infância). Não nasci para líder de nada, mas queria ter mais modelos femininos menos intensos, tipo a Selma Blair.

a Selma Blair

2.1.10

gogó

Não sou mais cristã faz um tempo, e foi surpreendentemente fácil abandonar certas crenças dessa época - as que, para mim, nunca fizeram sentido. Para o cristianismo, você não deve ser orgulhoso e sim humilde; mas como também mandam você desenvolver discernimento e não ser hipócrita, bem, aí fica complicado.
Vamos dizer que você pinte bem. Você tem que diferenciar o bom do ruim com seu discernimento, mas se você criticar quem pinta mal (mesmo em pensamento), está sendo orgulhoso; se falar bem dele sabendo que é ruim (mesmo em pensamento), estará sendo hipócrita. O certo cristão seria, com o discernimento, reconhecer de coração que pintar bem não vale nada, porque o reino dos céus é que é tudo; mas, aí, quem teria motivos para sequer comprar pincel e tinta?
É basicamente por isso que cristianismo não deu certo para mim. Se você aceita os dogmas, vira um esquema consagrado e fechado, praticamente sem furos, mas que conduz à inércia nesse mundo pelo pensamento fixo no próximo - se você praticar direito. Na prática, muitos cristãos incorrem em orgulhos secretos encobertos por hipocrisias. Não-cristãos também, já que está arraigado na nossa cultura que orgulho é feio.
Acho mais honesto assumir que tenho orgulho quando tenho orgulho e pronto.

Dito isso, admito que o orgulho ainda me incomoda. Ele me incomoda principalmente quando impede a pessoa de ter a dimensão real do seu talento e de trabalhar para aumentá-lo sempre. O orgulho faz essas pessoas perderem tempo vedando as juntas de um escudo anti-críticas e até - putz - fazendo intriga contra outras que as ameacem por terem mais talento.
Ter orgulho da coisa certa é importante - aí entra o discernimento. Não dá para eu ter orgulho do meu talento de webdesigner, por exemplo. De fato, se alguém com talento quisesse me ajudar com isso, seria ótimo.
Outra coisa: acho chata toda essa cultura de vanglória. Todos esses rappers cujo único assunto é se vangloriar o tempo todo. Quando um hip-hop faz sucesso, é porque o público pensou: uau, como ele é foda em dizer que é foda! sem nem averiguar se procede, e muito menos questionar a qualidade dessa vitória cantada. Profecia auto-realizável, aliás, porque assim vem a fama, e o dinheiro, e as cachorras. E as mulheres que se vangloriam de quem tem/faz mais drama? Ai, que saco. Alguém estoura essa bolha.