11.3.10

Maldito comentarista anônimo

Já quando foi lançado, em 1605, o primeiro Dom Quixote foi um tremendo sucesso. Esgotou dez edições em castelhano. Seus personagens apareceram em bailes de máscaras já no ano seguinte. Foi traduzido rapidamente para inglês e espanhol - e só não o foi para o português porque, naquela época, a Ibéria era praticamente bilíngue. Os portugueses liam castelhano numa boa*.
Cervantes deixou o final do primeiro Quixote em aberto, à moda das franquias cinematográficas atuais. Com o sucesso, Cervantes começou a escrever uma continuação no passo dele. Acontece que, antes de sair o segundo volume do Quixote, saiu uma suposta continuação, de má qualidade, escrita por um tal de Avellaneda - que, ainda por cima, era um pseudônimo.
Dá para imaginar que Cervantes tenha ficado queimado com isso. O que ele fez? Tentou descobrir a verdadeira identidade do sujeito? Processou o fidaputa para retirar aquilo de circulação? Moveu uma campanha de difamação pública do canalha?
Não. Ele resolveu inserir aquilo na história.
No segundo volume, Dom Quixote fica sabendo que andava circulando um livro contando suas aventuras (o primeiro volume, por Cervantes), e ainda um outro que contava "tudo errado" (o de Avellaneda).
Gênio que era, Cervantes bolou uma solução perfeita para o problema do direito autoral - não a pirataria, mas o problema do "dono da ideia": mostrar que você é muito melhor e por isso é o legítimo titereiro da ideia. E, se não inventou a metalinguagem, pelo menos a usou de forma brilhante, no melhor estilo sua-inveja-faz-a-minha-fama. E isso em 1615!

As informações desse post vieram das edições da Editora 34, volume um e volume dois. Isso é o que a orelha diz, e o prefácio. Estou começando o segundo volume agora - avidamente, é claro.

*A versão portuguesa só veio em 1794, quase duzentos anos depois, com o fim desse bilinguismo.