27.11.15

Para a minha avó

Desde a primeira cantada de rua (eu devia ter 11 ou 12 anos), fui reclamar com as mulheres da minha família, indignada. Minha avó sempre dizia: "vai querer mudar o mundo?", como se fosse algo errado se indignar com aquilo. E dizia que era para eu achar engraçado. Que eu tinha que rir. O pior é que, no fundo, ela concordava comigo, eu sei disso. Só estava frustrada porque a sociedade inteira ficou a vida inteira não concordando com ela.
Eu mesma passei quinze anos nesse blog reclamando de cantadas de rua. Nem sempre fui uma feminista exemplar: posts antigos têm um tom slutshamer e/ou elitista. Mas a indignação estava lá. Nunca a deixei morrer.
Nesse meio tempo, fui rareando os posts que reclamavam especificamente de cantadas porque aqui mesmo, quando tinha caixa de comentários, várias pessoas, homens e mulheres, vinham me dissuadir. Diziam que "pegava mal". Perguntavam: "ué, mas você não gosta de ser paquerada?" (Não. Depois de 50 posts, não era óbvio?). Declaravam em outro lugar que até gostavam do meu blog antes, mas agora já não aguentavam mais ouvir eu reclamar de cantadas, e que a vontade era me gritar "gostosaaaa!" (mas não na minha cara, lógico).
E acabei desistindo de reclamar pra fora. Guardei minha indignação para mim, porque ela não encontrava eco nem na internet -- que me deu eco para meu apreço por quadrinhos e videogames e tantas coisas "esquisitas de mulher gostar". Perdi as esperanças.
E, algum tempo depois que desisti, começou a existir rede social "pra valer". E celulares com câmera. As mulheres descobriram o feminismo, e, mais importante, a sororidade. Elas começaram a reclamar de cantadas, de assédio, de passada de mão, de exibicionista e abusador de metrô, de pedofilia, de agressão e de tantas coisas que as incomodavam sistematicamente. E mais importante: aprenderam a reclamar da reclamação indevida dos outros ("ah, mas você reclama demais...").
E em 2015 isso atingiu uma massa crítica. Em 2015 as mulheres se cansaram de aguentar o que minha avó aguentou a vida inteira calada. Estou muito orgulhosa de todas nós. Queria que minha avó pudesse ver isso. Tenho certeza de que ela adoraria, e se sentiria representada, e ia começar a falar noutro tom.

Minha avó nasceu em 1930, no Rio mesmo. Adorava a escola -- pública, de qualidade, do Getúlio Vargas --, era inteligente, e só tirava notas altas. Mas teve que sair da escola na 7a série para ir trabalhar e ajudar no orçamento doméstico, pois só tinha irmãs (três!) e meu bisavô ficou incapacitado. E além disso, mulher vai só casar mesmo, pra quê educá-la?
Corta pra uns 4 anos depois, minha avó trabalhando numa casa comercial, 18 anos, se candidata a Miss Mi-Carême (Meia Quaresma, o que hoje se chama de... micareta). Era um concurso só para "modistas", ou seja, balconistas de butiques chiques. Minha bisavó descobriu que haveria desfile em traje de banho (quer dizer, um maiô super comportado pros padrões de hoje) e proibiu minha avó de desfilar. E assim ela perdeu sua segunda grande chance de ser alguém.
Quando mesmo as melhores de nós são podadas tão cedo, não dá para vencer nem pela beleza nem pela inteligência...
Espero que possamos mudar isso, ainda que tardiamente.

Albertina Rodrigues, minha avó materna, na época de sua candidatura a Miss Mi-Carême.


12.11.15

A boa menina leitora

I.                    Hilda Hilst

A boa menina leitora é calada, tímida e vive com a cara enfiada no livro. Recentemente, ela ganhou a variação geek girl, maníaca por tecnologia e games. Ela não usa minissaia. Não pratica esportes, especialmente de contato. Não pode ter vida sexual detectável. E, mesmo que se torne escritora, escreverá polidamente. Que escreva as maiores barbaridades, mas há de escrevê-las com parágrafos respeitavelmente longos e fluxo de consciência, sem palavrões; se preferir um estilo experimental e entrecortado, embaixo dele o leitor só deve ver platitudes pseudorrevoltadas.

Ao que parece, não existe (ou ninguém aguentaria) uma mulher forte em ambas as frentes: a temática e a estilística.

E aí temos a Hilda Hilst, que foi os dois. Temática e estilisticamente forte. Tanto “intelectual respeitada” como “alternativa”. Escritora de barbaridades... com estilo (e palavrões). Como? Sendo foda. Não digo “genial” porque isso implicaria em me subscrever à ideia romântica de escritor “original” que tira a “inspiração” de seu gênio interior. Hilda extraía sua matéria-prima de seu mundo interior, sim, mas também da natureza e do sagrado. Que, para ela, eram meio que a mesma coisa.

Depois de Hilda, então, “se dar ao respeito pra obter respeito” na literatura, sendo mulher, hoje em dia, se torna uma falácia incontornável.

Temos é que dar com o pé na porta.


II.                  Bom, barato e cordato

Essa ideia genérica de que “é bonito” ser escritor/ter paixão pela leitura ou “pela literatura” se torna especialmente perniciosa quando se é mulher. Receber ofertas de trabalho, a gente recebe: mas 50% são para trabalhar de graça, 35% para trabalhar ganhando um trocado, e 15% para trabalhar ganhando menos que nosso(s) amigo(s) homem(ns) – com quem, sim, a gente conversa. A gente acaba se concentrando nesses 15%, convencidas de que, se mostrarmos serviço, a coisa vai andar – e por andar queremos dizer que ganharemos mais. Mas não é assim que a coisa anda. Simplesmente ficamos congeladas feito um preço de supermercado na época do Sarney presidente. O custo de vida? Continua aumentando.

E você olha para os lados e vê suas amigas mulheres passando pela mesma coisa.

Você acaba entendendo que a boa menina leitora é vista como uma reserva de força de trabalho barata – e boa, porque sempre se esforçando para mostrar serviço. E mais: se o dinheiro fica curto e a editora resolve escolher alguns otários para não receber (em vez de pegar um empréstimo e honrar seus compromissos), quem ela calota? A boa menina leitora, que, na cabeça do mau pagador, vai ficar quietinha.

Aí ela não fica quietinha. E vira persona non grata.

Mesma coisa quando pede um aumento para continuar o ótimo trabalho que vem fazendo.

Pô, como assim, você era nosso porto seguro de bom-e-barato-e-cordato! Você nunca foi de criar problema!


Não, queridos. Vocês só não nos conheciam o suficiente.

29.10.15

A ingratidão da musa

                Estava lendo o Twitter de Paulo Coelho – sim, eu o assino – quando encontrei uma reclamação: “certa vez tive uma musa... e aí ela me acusou no Sunday Times de ‘roubar sua alma!’”. E postou uma matéria onde Christina Lamb, jornalista de guerra, se queixava de ter sido escolhida como musa da personagem principal de O Zahir, reconhecendo também que ficara lisonjeada com a homenagem. Mas, para ela, o saldo final era negativo. Dizia, de fato, que sua alma fora roubada.

                O efeito cumulativo

                Originalmente, a musa era uma divindade que inspirava o autor segundo sua arte: Calíope inspirava o orador público, Terpsícore os dançarinos, o dramaturgo tinha a ajuda de Melpômene... assim, muitas obras começavam com a invocação às musas. Mas a metáfora não demorou nadinha a se deslocar para mulheres reais. Safo, poetisa da ilha de Lesbos, logo foi arrolada como “a décima musa” por ninguém menos que Platão. E hoje é assim que entendemos “musa”: uma mulher que se destaca em algum campo (até mesmo o de futebol) e é bonita, atraente.

                No mundo literário, chamar de musa é considerado o jeito elegante de expressar interesse sexual, ou de reconhecer que seu magnetismo sexual é tão grande que você até foi aproveitada como personagem (uau!). Nunca vi ninguém chamando o DFW de muso do Franzen e do Eugenides. Deve ser porque nesse caso eles têm direito de existir como outras coisas (sujeitos, por exemplo), e ninguém se sentiria confortável sugerindo homossexualidade aí. Então tem, sim, uma sugestão sexual em chamar alguém de musa, pelo menos hoje em dia. E tem, sim, machismo.

                Explicar que você não gosta da pecha de musa é como explicar que você não está a fim de levar uma cantada. É atenção na hora errada, do jeito errado, no lugar errado. E é prejudicada pelo efeito cumulativo: parece que tudo o que querem com você é te chamar de musa e/ou pegar sua vida e reescrever do jeito deles. Ler o que você escreve? Que nada.

                A musa involuntária

                Não sou hipócrita: todos e todas precisam de atenção para fazer suas coisas – seja essa coisa conseguir alguém com quem trepar, seja avançar na carreira – mas no caso das mulheres essas atenções vêm muito contaminadas umas pelas outras. MUITO. Não dá para descontaminar totalmente (nem acredito que deveria), mas se é assim que acontece...

                ...alguém aí já viu Mad Men? (E Mad Max?)

                Hoje em dia, certas coisas mudaram. Há muito incentivo para a mulher sair da feminice tradicional (casa, filhos, marido) e se concentrar em carreira, experimentações sexuais, hobbies considerados masculinos (futebol, videogames, marcenaria). Mas uma vez que você chega nesses “lugares” onde é minoria, você se torna objeto de desejo, já que está tão “perto do coração dos homens”. Mas justamente agora que eu estava tentando ser um sujeito?, você pensa.

                Hoje precisamos mais de espaço para atuar do que príncipes para nos salvar desse trabalho todo de sermos alguém. O irônico é que as mulheres que querem desesperadamente ocupar esse pedestal de musa não interessam aos eleitores de musas. Todos sabem que a moça que jura que foi musa de livro X ou vive tentando colar no autor Y não é mesmo a musa (sabem, não é?). Os eleitores de musas gostam justamente das que não querem saber disso. Por quê? Porque beleza não é tudo. Eles querem também morcegar a sua vida, aquela que você construiu pra você a duras penas.

                A musa como double bind (duplo constrangimento)

                É uma cilada, Bino! Uma armadilha clássica. Você faz uma coisa por um motivo pessoal e afetivo (tocar bateria, escalar montanhas) e a maioria masculina te trata como se você estivesse ali com segundas intenções: conseguir homem, é claro. Mais especificamente, ele. “Pode parar de fingir que gosta mesmo de estudar engenharia: você já me encontrou!”

                Por dizer não para esse narcisismo masculino tão tolerado e insidioso, você se torna um pouco odiada também, por “invadir o mundo masculino”, imagine só, querendo ser melhor que eles. Quem tem terceiras intenções, que fique claro, são eles – e ela se chama “te manter no teu lugar”.

                Essa armadilha que mencionei também tem nome. É o famoso double bind, que costuma ser traduzido como duplo vínculo ou duplo constrangimento; em bom português, “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Você pode dizer não pros homens do seu campo até se ver emparedada pelo ressentimento alheio, ou dizer sim (querendo de verdade ou não) e virar “a namorada do Fulano” ou “a piranha do pedaço” – coisas que também emparedam. De qualquer modo, você geralmente acaba odiando tudo nesse campo, a começar pelos seus colegas, a terminar pelo fato de não ascender na carreira, batendo no tal teto de vidro. “Eu até queria ir no ensaio hoje, mas para isso tenho que enfrentar aquele clima estranho na banda depois que fiquei com Cicrano e disse não pro Beltrano...” Para sair da relação doentia, o único meio é deixar o seu campo para trás (“provando” mais uma vez que “mulheres não são ‘feitas’ pra isso”).

                É o que muitas fazem: desistem. Desistem de uma relação afetiva com a ciência, a programação, a cultura nerd ou o que seja porque ligam mais para sua saúde mental (copyright Jane Eyre, 1847). Uma relação que tinha tudo para ser saudável, mas acaba tóxica porque o campo é constituído de pessoas, as pessoas são na maioria machistas e você só queria ser feliz deixando acontecer naturalmente – o que fosse, até sexo. E o que acontece não tem nada de natural: é uma tentativa de manter as coisas como são, perversas.

                O roubo de cena e o disclaimer “nem todo homem”

                Nem todo homem é mal intencionado. Quando alguém arrola uma mulher como musa, e praticamente aponta quem é, talvez genuinamente não entenda como é ruim para nós essa “grande honra”. Então vou explicar.

                Muitas de nós lutamos a vida inteira para poder agir como sujeito de nossas vidas: fazer karatê em vez de balé, poder sair à noite, cursar química e não nutrição. Alguém escolher pegar nossas vidas que tanto lutamos para moldar sob nossos próprios olhos (exigentíssimos!) e, sem nos consultar, expô-la como criação sua aos olhos dos outros é ultrajante e doloroso. Nos rouba a cena enquanto finge divulgá-la. Ao mesmo tempo que essa escolha reconhece externamente como “interessante” a identidade que tanto nos custou para montar, sugere, querendo ou não, que ela carece de validação externa – uma validação historicamente concedida... por homens. E geralmente por motivos como... beleza física – daí a palavra “musa” ser tão incômoda para nós, que queremos ser mais que um rostinho bonito. Ou seríamos modelos, misses, rainhas do bumbum.

                (Nada contra essas profissões. Mesmo. Mas me disseram, e acreditei, que escolhendo uma profissão não relacionada com o corpo eu teria muito menos problemas com homens infantis e abusados. E não é verdade não.)

                (Em tempo: Gisele Bündchen é musa porque trouxe algo além da beleza pros desfiles. Uma vivacidade, uma alegria de viver, uma espontaneidade que as modelos em geral não têm. Mas, acima de tudo, profissionalismo. Ela conseguiu ser sujeito.)

                Vamos dizer que você seja escritor e considera uma mulher real a sua musa. Acha ela bonita, acha foda o que ela fez com a própria vida. Longe de mim querer te proibir de se inspirar em alguém para escrever. Se o objetivo é esse, o que seria elegante? Decompõe a mulher, cara. Decompõe em vários personagens, não diga quem os inspirou. Diga que foram várias. Diga que não foi ninguém. E não conte para ela. Não a coloque nessa berlinda terrível, nesse double bind. Porque ou ela fala que não curtiu e prejudica a relação entre vocês, ou engole o sapo e prejudica a relação entre vocês.

                Agora, se o seu objetivo é pegar sua musa, e ela é uma mulher empenhada em ter vida própria, vou contar um segredo de polichinelo: não vai dar certo. Quando a mulher fica sabendo que foi/é sua musa, ela automaticamente perde qualquer tesão que porventura ela já tenha nutrido por você. Porque você não entende, não entende...! (Se quer entender, releia o texto.)

                Fica o alerta: não adianta se ressentir por ela não querer ocupar esse pedestal que você escolheu unilateralmente para ela. Ela vai se sentir roubada, não homenageada. Não é você; é que são muitos “vocês” e ela já está de saco cheio de ficar ali em cima sem fazer nada.

                A sensação que tenho, no entanto, é que a maioria dos homens que nos colocam nesse poleiro já sabe muito bem disso. Ficar lembrando continuamente que somos mulheres – seja com cantadas e “elogios” ou cobranças de conhecimento profundo do campo –, com toda a carga de bosta que atrelaram à identidade “feminino” (frágil, emotiva, irracional, fútil, complicada, inexplicável, esquisita, misteriosa, alienígena...), me parece, hoje em dia, só um jeito canalha de nos exasperar e enxotar do espaço que adorariam que fosse só deles. Não vai ser não, amigo. Já estamos ligadas nesse mecanismo, e ligadas umas com as outras. O circuito alternativo, aquele que levanta a bola também das mulheres, já está acontecendo, e o circuito machista vai encolher até sumir. Nem que seja por não se reproduzir...


                Esteja o rapaz nessa por inocência ou com malícia, o fato é que uma hora ele vai rodar. Não esqueça, além de criadoras, nós também somos o público.

16.8.15

Será que o presente é o futuro? - Notas sobre tempos verbais

Uma crítica recente de Antônio Ramos da Silva ao meu último romance, A vez de morrer, elogiava bastante o livro, exceto pelo uso de pretérito mais-que-perfeito (qualificado de "insistente"). Não é a primeira vez que questionam esse uso, então vou brincar de oficina literária aqui e explicitar o que há por trás do meu uso desse tempo verbal, dentro da tradição literária.

Línguas latinas, como o português, francês e espanhol, costumam render frases maiores para exprimir "uma mesma" ideia do que línguas germânicas, como o inglês e o alemão. (Coloco "uma mesma" entre aspas porque, enquanto não está em palavras, não considero ainda essa pré-ideia uma ideia, e uma vez posta em palavras de idiomas diferentes, já não é a mesma ideia. Sei porque traduzo...) Daí o autor de língua latina que quer exprimir uma ideia complexa precisa se virar nos trinta para não deixar a frase irremediavelmente feia e troncha, cheia de "de" e de verbos auxiliares.

Para evitar esses verbos auxiliares, um truque comum na literatura em francês é usar o passé simple, que equivale mais ou menos ao nosso pretérito perfeito e, na terceira pessoa do singular, termina em "a". (Por exemplo: "ele passou" fica "il passa". Para um leitor que fala português e não francês, fica parecendo o nosso presente do indicativo.) Acontece que esse tempo verbal nunca é usado na fala cotidiana em francês. No dia a dia eles usam o passé composé, com verbo auxiliar (il a passé), também equivalente ao nosso pretérito perfeito. É mais fácil de conjugar, mais coloquial. Mas na hora de narrar... recorrem ao "empolado" passé simple. A única explicação para isso me parece que é para a frase ficar menos pesada.

Em português, além de recorrer ao mais-que-perfeito, outra solução é colocar o livro todo no presente. Fiz isso no livro A feia noite, meu segundo romance, após No shopping. Assim, você terá lindos e sucintos verbos terminados em "o" na primeira pessoa (passo) e "a" na terceira (passa). Em terceira pessoa, nosso presente do indicativo fica sumário como o passé simple do francês, sem a empolação. Ao se referir ao passado, você geralmente vai usar o pretérito perfeito - quase nunca terá que usar tempos compostos. Aparentemente, só vantagens. Sendo assim, será que o presente (do indicativo) é o futuro? Todos os livros que se almejem bons/de sucesso devem ser escritos no presente?

Creio que não. No caso de A feia noite, tratava-se de personagens em crise, passando por situações que os tiravam de sua zona de conforto todos os dias (ou melhor, todas as noites, pois o livro se passa quase todo à noite). Estava difícil continuar escrevendo no passado, denotando que os personagens teriam sobrevivido a tudo aquilo (e depois de tudo sobraria alguém para narrar). Além do mais, o livro é propositalmente empolado. Para tirar um pouco dessa empolação do nível da frase e tirar a impressão de que os personagens sobreviveriam para contar (no passado) o que lhes acontecera, passei o livro todo para o presente. Ficou muito melhor. A história deslanchou e pude terminá-la.

Mas, no A vez de morrer, não senti vontade de usar o mesmo recurso. Até pensei em usá-lo, pois novamente era uma personagem saindo de sua zona de conforto e se arriscando (inclusive a morrer); mas o vocabulário que eu usava era mais simples, e eu ainda queria fazer referência a estruturas tradicionais do romance. Preferi deixar os mais-que-perfeito lá. Mas os diálogos são "realistas", coloquiais. Confiei que os leitores entenderiam que era isso que eu pretendia: apontar para a tradição sem deixar de mexer nela.

Então não é que escrever livros em português no presente do indicativo seja o futuro, mas é preciso balancear o que você, autor, quer com as necessidades da história -- sabendo que nunca vai agradar a todo mundo. Que pelo menos agrade a sua consciência artística, senso estético ou seja lá como você chame aquilo que te põe para escrever.

31.7.15

Isso não é (só) uma crítica de game

Acabei de jogar um jogo chamado The Talos Principle, da Croteam, uma desenvolvedora croata. Ouvi falar que era um puzzle parecido com Portal e Antichamber, dois grandes favoritos, e resolvi experimentar, mesmo sem saber muito sobre a história. Você desperta no papel de um robô respondendo aos comandos de um certo Elohim em um certo Jardim. Elohim te chama de meu filho ("my child") e quer que você resolva muitos puzzles para ganhar "sigils" (que são iguais a peças de Tetris). Sua recompensa, diz ele, será "a vida eterna".

Mas logo você descobre que não é só isso que tem para fazer no Jardim. Você pode cumprir outras missões fora a dada por Elohim. Você pode explorar e encontrar coisas novas a fazer -- algumas delas contrariando diretamente as ordens de Elohim, como subir na torre proibida.

E aí? Prontos para o SPOILER?

Você está dentro de uma simulação. Um ambiente virtual para robôs criado por seres humanos pouco antes de sua mal-explicada extinção. Mais ou menos uma Matrix ao contrário -- mas uma Matrix designada para que sua cobaia robótica extrapole o experimento, tornando-se... humano. Afinal, na concepção do jogo, é isso que humanos fazem: brincam, pensam lateralmente, são curiosos e... desobedecem.

Agora eu vou CONTAR O FINAL, então, fiquem avisados que é possível pular o próximo parágrafo. (Pessoalmente, acho que contá-lo não estraga o jogo.)

O objetivo final dessa simulação é produzir um pós-humano na carcaça de um robô. Apenas o robô verdadeiramente "independente", que conseguir “pensar por si mesmo”, futricar em tudo e desobedecer Elohim, "matando-o" (igual a um humano), será selecionado para ser gravado em um corpo físico e acessar o mundo real. Porém, atentando para o detalhe de que nenhum homem é uma ilha, o enigma final no topo da torre requer colaboração com outro robô, The Shepherd -- mas também há outra robô, a Samsara, tentando atrapalhar sua ascensão. (Gostei dessa parte.)

Em The Talos Principle, a humanidade de carne e osso foi eliminada e esta simulação foi seu último esforço pra se perpetuar. A singularidade miguxa do jogo (ei, máquinas, continuem a humanidade aí por nós) até pode cativar um jogador desavisado, assim como atualmente há quem esteja cativado pela ideia de “literatura feita por robôs”. Mas tudo cai por terra quando você pensa que o robô "humano" é controlado (no jogo) por um humano.

É uma nova versão daquela máquina de xadrez com uma pessoa dentro...

Um ser humano de verdade controlando um robô “destinado a pensar de forma independente, como um ser humano”. Isso é circular. Assim como é circular pensar que robôs podem produzir literatura "independente" se são os humanos os juízes finais da qualidade dessa literatura. Quando os robôs puderem votar entre si e dar, digamos, um prêmio literário robótico à melhor literatura produzida por robôs, para robôs, aí a gente conversa.

Melhor ainda se eles mesmos tiverem a ideia de criar esse prêmio para diferenciar a literatura robótica “séria” da literatura robótica ruim, muito popular, mas que apela aos mais baixos instintos do robô.

Pois é, não gosto de rótulos como literatura robótica ou feminina ou erótica, exceto como mote ocasional ("tema de redação") em antologias e afins. Para mim, essa separação entre elementos (assim como independência, livre arbítrio) que gostaríamos de postular para fins de estudo não pode ser reificada. Quer dizer, até pode, e é, muitas vezes, mas raramente com a consciência de suas limitações. Gostei de The Talos Principle na crítica sutil a essa ideia de que “dá para separar” “sujeito” de “objeto” -- marcando-os como tais para todo sempre. Traçar a linha que divide cego de bengala, homem da natureza, homem de máquina para fins de estudo não quer dizer que esta linha esteja lá, não como fato inalterável. No mundo real, as coisas vazam uma para a outra, e humano mesmo é não conseguir dar conta de tudo (e não admitir isso por nada deste mundo).

7.5.15

Uma geração cética

O cigarro eletrônico é um dispositivo a bateria que produz vapor (e não fumaça) a partir de uma resistência. É usado geralmente com essências aromáticas feitas à base de produtos usados na indústria alimentícia e cosmética (como a glicerina vegetal) que contêm certa dosagem de nicotina, estipulada na embalagem. É muito adotado por quem deseja parar de fumar. Não por fazer bem, mas por fazer menos mal que o cigarro: não contém os tóxicos da queima nem os aditivos usados pela indústria de tabaco. Além disso, cigarros eletrônicos significam economia: as partes, intercambiáveis, podem ser compradas individualmente; o líquido é fácil e relativamente seguro de fabricar na própria casa, e totalmente customizável – a pessoa pode até ir baixando o teor de nicotina até o zero, se quiser.
No entanto, é um dispositivo proibido no Brasil pela Anvisa.
O copinho menstrual é um copinho feito de silicone médico que substitui o absorvente. Como qualquer coisa de silicone que vá ter contato com áreas íntimas, deve ser esterilizado em água fervente por três minutos (antes e depois de usado, diz o manual). Basta aprender a encaixá-lo na vagina de maneira a formar um vácuo, e pronto: o conforto é sem igual. A economia é imensa. O cheiro diminui drasticamente, pois o sangue não oxida em contato com o ar (só na hora de esvaziar).
Mas uma amiga usuária de copinho ouviu da ginecologista: “nossa, mas você gosta mesmo de ficar mexendo lá dentro, não é?”.
Os anunciantes da mídia não precisam falar com todas as letras aos veículos noticiosos que preferem não ver matérias sobre esses produtos que machucam seus interesses, mas às vezes falam: quando você encontra aquela matéria pisoteando o cigarro eletrônico como se fosse o pior dos venenos, por exemplo. O usuário de cigarro eletrônico (ou vaper, como preferem ser chamados) chega a vibrar: é a confirmação de que está preocupando a indústria que um dia o escravizou. No caso do copinho menstrual, temos o silêncio ensurdecedor dos cadernos e revistas “de mulher”, que preferem falar de moda e beleza (e libido e bebês e carreira, nessa ordem). Mas existe o boca a boca: uma amiga evangeliza a outra sobre os benefícios do copinho e dá dica de marcas, tipos, manutenção... quase uma convenção das bruxas.
A internet possibilitou que as pessoas se comunicassem, se informassem e comercializassem por fora dos monopólios. Talvez esses fenômenos sejam mais visíveis nas indústrias ligadas a mulheres: algumas delas desistiram de usar métodos hormonais de contracepção por acreditar que a carga hormonal é danosa; outras assumiram os cabelos cacheados, após anos de chapinha, com um método que pode ter baixíssimo custo (low poo/no poo). Outras desistiram de depilar as axilas ou tingir os cabelos brancos. Outras, por outro lado, descolorem e tingem as axilas. Ou seja: não é mais uma questão de “fazer as grandes indústrias arrancarem os cabelos”, e sim de desafiar nossas próprias preconcepções e ouvir nossos corpos e a comunidade em que vivemos para procurar um jeito melhor – ou menos pior – de viver.
Quem faz isso já desistiu há tempos de esperar o endosso da grande mídia, do governo e da sociedade tradicional a produtos e escolhas como essas. Não nos sentimos representados por colunistas que deveriam falar a nossa língua e só conseguem audiência quando desfiam chauvinismos. Não conseguimos diálogo com a geração dos nossos pais, que não entendem porque precisamos verbalizar coisas tão desagradáveis como câncer de pulmão, sangue menstrual e... vaginas. Vemos esses mesmos pais baterem panelas ou xingar quem bate panelas com uma paixão que não mostraram na hora em que decidimos sair às ruas para os protestos de 2013 (ouvimos, na verdade, um “leva um casaquinho”).
Vejo uma geração cética, muitas vezes congelada na ataraxia (a serenidade da descrença), mas nunca deixando de questionar e ter esperança em caminhos, caminhos se possível melhores – no mínimo, menos piores. Uma coisa é visível: há cada vez menos inocentes, e o cara de pau que alega acreditar em dicotomias/dogmas e viver por eles é considerado imediatamente, por essa geração desconfiada, o menos inocente de todos.