27.11.15

Para a minha avó

Desde a primeira cantada de rua (eu devia ter 11 ou 12 anos), fui reclamar com as mulheres da minha família, indignada. Minha avó sempre dizia: "vai querer mudar o mundo?", como se fosse algo errado se indignar com aquilo. E dizia que era para eu achar engraçado. Que eu tinha que rir. O pior é que, no fundo, ela concordava comigo, eu sei disso. Só estava frustrada porque a sociedade inteira ficou a vida inteira não concordando com ela.
Eu mesma passei quinze anos nesse blog reclamando de cantadas de rua. Nem sempre fui uma feminista exemplar: posts antigos têm um tom slutshamer e/ou elitista. Mas a indignação estava lá. Nunca a deixei morrer.
Nesse meio tempo, fui rareando os posts que reclamavam especificamente de cantadas porque aqui mesmo, quando tinha caixa de comentários, várias pessoas, homens e mulheres, vinham me dissuadir. Diziam que "pegava mal". Perguntavam: "ué, mas você não gosta de ser paquerada?" (Não. Depois de 50 posts, não era óbvio?). Declaravam em outro lugar que até gostavam do meu blog antes, mas agora já não aguentavam mais ouvir eu reclamar de cantadas, e que a vontade era me gritar "gostosaaaa!" (mas não na minha cara, lógico).
E acabei desistindo de reclamar pra fora. Guardei minha indignação para mim, porque ela não encontrava eco nem na internet -- que me deu eco para meu apreço por quadrinhos e videogames e tantas coisas "esquisitas de mulher gostar". Perdi as esperanças.
E, algum tempo depois que desisti, começou a existir rede social "pra valer". E celulares com câmera. As mulheres descobriram o feminismo, e, mais importante, a sororidade. Elas começaram a reclamar de cantadas, de assédio, de passada de mão, de exibicionista e abusador de metrô, de pedofilia, de agressão e de tantas coisas que as incomodavam sistematicamente. E mais importante: aprenderam a reclamar da reclamação indevida dos outros ("ah, mas você reclama demais...").
E em 2015 isso atingiu uma massa crítica. Em 2015 as mulheres se cansaram de aguentar o que minha avó aguentou a vida inteira calada. Estou muito orgulhosa de todas nós. Queria que minha avó pudesse ver isso. Tenho certeza de que ela adoraria, e se sentiria representada, e ia começar a falar noutro tom.

Minha avó nasceu em 1930, no Rio mesmo. Adorava a escola -- pública, de qualidade, do Getúlio Vargas --, era inteligente, e só tirava notas altas. Mas teve que sair da escola na 7a série para ir trabalhar e ajudar no orçamento doméstico, pois só tinha irmãs (três!) e meu bisavô ficou incapacitado. E além disso, mulher vai só casar mesmo, pra quê educá-la?
Corta pra uns 4 anos depois, minha avó trabalhando numa casa comercial, 18 anos, se candidata a Miss Mi-Carême (Meia Quaresma, o que hoje se chama de... micareta). Era um concurso só para "modistas", ou seja, balconistas de butiques chiques. Minha bisavó descobriu que haveria desfile em traje de banho (quer dizer, um maiô super comportado pros padrões de hoje) e proibiu minha avó de desfilar. E assim ela perdeu sua segunda grande chance de ser alguém.
Quando mesmo as melhores de nós são podadas tão cedo, não dá para vencer nem pela beleza nem pela inteligência...
Espero que possamos mudar isso, ainda que tardiamente.

Albertina Rodrigues, minha avó materna, na época de sua candidatura a Miss Mi-Carême.


12.11.15

A boa menina leitora

I.                    Hilda Hilst

A boa menina leitora é calada, tímida e vive com a cara enfiada no livro. Recentemente, ela ganhou a variação geek girl, maníaca por tecnologia e games. Ela não usa minissaia. Não pratica esportes, especialmente de contato. Não pode ter vida sexual detectável. E, mesmo que se torne escritora, escreverá polidamente. Que escreva as maiores barbaridades, mas há de escrevê-las com parágrafos respeitavelmente longos e fluxo de consciência, sem palavrões; se preferir um estilo experimental e entrecortado, embaixo dele o leitor só deve ver platitudes pseudorrevoltadas.

Ao que parece, não existe (ou ninguém aguentaria) uma mulher forte em ambas as frentes: a temática e a estilística.

E aí temos a Hilda Hilst, que foi os dois. Temática e estilisticamente forte. Tanto “intelectual respeitada” como “alternativa”. Escritora de barbaridades... com estilo (e palavrões). Como? Sendo foda. Não digo “genial” porque isso implicaria em me subscrever à ideia romântica de escritor “original” que tira a “inspiração” de seu gênio interior. Hilda extraía sua matéria-prima de seu mundo interior, sim, mas também da natureza e do sagrado. Que, para ela, eram meio que a mesma coisa.

Depois de Hilda, então, “se dar ao respeito pra obter respeito” na literatura, sendo mulher, hoje em dia, se torna uma falácia incontornável.

Temos é que dar com o pé na porta.


II.                  Bom, barato e cordato

Essa ideia genérica de que “é bonito” ser escritor/ter paixão pela leitura ou “pela literatura” se torna especialmente perniciosa quando se é mulher. Receber ofertas de trabalho, a gente recebe: mas 50% são para trabalhar de graça, 35% para trabalhar ganhando um trocado, e 15% para trabalhar ganhando menos que nosso(s) amigo(s) homem(ns) – com quem, sim, a gente conversa. A gente acaba se concentrando nesses 15%, convencidas de que, se mostrarmos serviço, a coisa vai andar – e por andar queremos dizer que ganharemos mais. Mas não é assim que a coisa anda. Simplesmente ficamos congeladas feito um preço de supermercado na época do Sarney presidente. O custo de vida? Continua aumentando.

E você olha para os lados e vê suas amigas mulheres passando pela mesma coisa.

Você acaba entendendo que a boa menina leitora é vista como uma reserva de força de trabalho barata – e boa, porque sempre se esforçando para mostrar serviço. E mais: se o dinheiro fica curto e a editora resolve escolher alguns otários para não receber (em vez de pegar um empréstimo e honrar seus compromissos), quem ela calota? A boa menina leitora, que, na cabeça do mau pagador, vai ficar quietinha.

Aí ela não fica quietinha. E vira persona non grata.

Mesma coisa quando pede um aumento para continuar o ótimo trabalho que vem fazendo.

Pô, como assim, você era nosso porto seguro de bom-e-barato-e-cordato! Você nunca foi de criar problema!


Não, queridos. Vocês só não nos conheciam o suficiente.